quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Maternidade "especial" - o que o feminismo tem a ver com isso?

Por: 
CYNTHIA BELTRÃO

      Maternidade “especial” é um assunto delicado. É um tema extremamente dolorido e que envolve um luto, real ou simbólico, pela criança e pela maternidade que imaginávamos pra nós. Mas eu acho que mesmo nessa situação tão complicada cabe a reflexão. Reflexão, não crítica, vejam bem. Meu objetivo aqui não é trazer mais culpas para nós mães, ainda mais para as “especiais”.
     Nós mães “especiais” somos cobradas a ter uma postura, um jeito de viver nossa maternidade, que aguça ainda mais a culpa já vivida por todas as mães (toda mãe carrega uma culpa, acredite, é só cutucar que ela aparece). E eu coloco mães “especiais” assim entre aspas porque, mesmo sendo eu mesma uma mãe “especial”, eu tenho muitos problemas com esse termo. Mas eu chego lá. Primeiro um pouquinho de contexto.
     Minha gravidez foi super tranquila. Max foi uma criança planejada e desejada. Fiz todos os exames, me alimentei bem, caminhei e ganhei só o peso esperado. Até que no exame do último mês veio o susto. O médico parou, olhou e olhou. Olhou o coração. O coração do meu filho que até então era perfeito, “normal”. “Estou vendo um probleminha aqui, vocês têm certeza que ninguém falou nada disso nos outros exames?”. Não, ninguém tinha falado nada. O médico que deveria ter percebido isso, lá no ultrassom morfológico, se preocupou mais em perguntar para que time o papai torcia (pra nenhum, ele detesta futebol) do que olhar com atenção para o coração do meu filho. Ficamos sabendo ali, na reta final, que Max era portador de uma cardiopatia complexa, a transposição de grandes artérias, e que teria que ser internado logo ao nascer.
Walk this way together. Foto de Felix M no Flickr em CC,
 alguns direitos reservados.
Pelos meses seguintes eu ia voltar em pensamento para o momento desse exame inúmeras vezes, como se tentasse corrigir ou recuperar alguma coisa. Não podia ser verdade, estava tudo indo tão bem, por que logo com a gente, por que logo comigo? A sensação era a de acordar de um sonho bom e sentir ele se esvaindo devagar, dando lugar a uma realidade dura demais. Eu tentava voltar pra dentro do sonho, mas não tinha mais jeito.
Max nasceu de cesariana, a termo. Não aguentaria o parto normal, para o qual eu tanto tinha me preparado.      Primeiro luto. Foi direto para a UTI, mal pude segurá-lo antes disso. Segundo luto. Não conseguiu mamar no peito, passei a tirar leite com bomba elétrica, não sem antes passar um aperto terrível por falta de orientação. Terceiro luto. Depois disso parei de contar.
     Resumindo muito, Max passou por quatro cirurgias complexas, dez meses de internação em UTI, traqueostomia por oito meses (um deles em casa), alimentação por sonda, homecare. E depois de tudo isso, quando a cardiopatia tinha sido vencida, depois que ele já estava recuperado, inclusive matriculado em escola regular, veio outro susto.
      Aos dois anos e meio Max foi diagnosticado com autismo. O que parecia ser um simples atraso devido ao longo período de internação tinha contornos muito mais sérios. Ele não ficava com as outras crianças, interagia pouco, não falava, sentado girava sobre o próprio eixo, brincava só com a roda dos carrinhos, olhava pouco nos nossos olhos. Os sintomas eram de autismo clássico. Definitivamente não dava mesmo pra voltar pra dentro do sonho.
     Orientados pelo psiquiatra e depois de várias pesquisas, iniciamos as intervenções necessárias. Muita sala de espera depois, Max é hoje uma criança falante, esperta, curiosa e definitivamente autista. É uma criança com necessidades especiais. Mas isso não faz de mim uma mãe “especial”, não mesmo. Eu não gosto desse termo, já falei pra vocês? Vou explicar o porquê.
     Ainda na época da UTI e da cardiopatia eu rapidamente percebi que a culpa seria nossa companheira de jornada. Eu e meu marido observamos certa vez que logo que o bebê do leito ao lado melhorava, nós pensávamos “ah, que pena que não foi com o nosso”. Mas quando outro bebê piorava, dizíamos “ainda bem que não foi com o nosso!”. E isso gerava uma culpa danada. Percebendo que se tratava de uma reação normal para o ambiente, cunhamos a expressão “Síndrome do Bebê do Lado” para lidar melhor com a situação. E combinamos que íamos enfrentar a culpa e não deixar que ela nos consumisse. Foi aí que eu comecei a notar que com relação às mães os mecanismos geradores de culpa eram ainda mais cruéis. E que a ideia de haver algo de especial na maternidade era na verdade uma armadilha.
     Antes de mais nada, não existe nada de especial mesmo em ser mãe. Isso pode soar maldoso ou insensível, mas é verdade. Num país onde não temos direito nem acesso pleno a planejamento familiar, incluindo aí a legalização do aborto, maternidade não é uma opção. Pode ser algo extremamente especial num nível individual, fantástico, maravilhoso, espiritual mesmo. Mas se é assim para uma, pode não ser para todas. Pra muitas mulheres é uma imposição. E se não existe opção, não existe escolha plena. Sem escolha, nada resta de especial.
     A maternidade “especial” também não é nada especial. Muitas crianças nascem com necessidades especiais, outras se tornam. Basta uma meningite, uma rubéola, um motorista bêbado… e pronto. Então pode acontecer com qualquer uma, pode acontecer com todas, e a qualquer momento da vida. Mesmo assim existe um discurso que ronda essas mães e que impõe a elas o rótulo de “especiais”, como se elas fossem únicas. Aparentemente esse discurso faz um elogio dessa maternidade, mas na verdade é aprisionador, culpabilizante e extremamente machista.
     Vejam bem, é muito comum elogiarem a mãe especial da seguinte forma: “Deus escolheu VOCÊ pra mandar essa criança, seu filho é especial porque VOCÊ é especial”. Essa frase é muito comum, mas existem variações não religiosas. Todas elas têm implicações cruéis para as mães. Nós mulheres já somos praticamente treinadas para ver a maternidade como bênção e destino, imaginem quando se escuta isso.
      A primeira consequência é a entrega total. A mulher deixa de cuidar de si, da relação com o companheiro, dos outros filhos, se os tiver. A maioria dessas mulheres é heterossexual e encontra-se em um relacionamento estável com um homem. A maioria desses homens vai embora. A sociedade desculpa esses homens, mas não essas mulheres. Elas são “especiais”. Deus as escolheu especialmente para esse papel.       Elas não podem ir embora.
     Além disso uma mãe especial deve ser feita de um material mais resistente. Dela é cobrada uma resiliência maior, afinal ela foi escolhida. Muitas escondem o cansaço, a angústia, o desespero por detrás dessa imagem. Elas consideram que têm que aguentar mais, dar conta de mais. Afinal, elas não seriam mães “especiais” se não fossem capazes de suportar mais que todas as outras. Por isso procuram menos ajuda profissional, estão mais sujeitas à depressão e a outros sofrimentos mentais, e consequentemente, à perda de emprego e à dissolução dos vínculos afetivos e familiares. É muito comum essa mulher se isolar na sua dor.        E a solidão, a depressão, o cansaço e a falta de perspectivas acabam sendo vistas como parte daquilo que é ser mãe “especial”. Tentar procurar ajuda é visto por ela e pela sociedade como sinal de fraqueza, afinal ela deveria aguentar. Ninguém cuida do cuidador.
     Para o Estado a mãe “especial” também é perfeita. Ela geralmente tem duas opções. Ou vai aceitar seu papel sem cobrar do governo a ajuda devida ou vai se organizar em associações que em sua maioria também substituem a ação estatal, como é o caso de algumas APAES. O Estado fica na cômoda situação de enviar verbas enquanto as famílias se desdobram para ocupar o vácuo deixado no tratamento dos seus filhos. Pretendo abordar essa questão, que é bastante complexa, em outro momento.
     É bom lembrar que essa idealização da maternidade é perniciosa também para a própria criança portadora de necessidades especiais. A mãe, tomada pela ideia de que precisa fazer todos os sacrifícios em nome do seu filho, vira presa fácil de tratamentos mirabolantes. A maior parte é indicada por gente que tem genuína vontade de ajudar mas pouco bom senso. Mas existem os aproveitadores que vendem tratamentos “alternativos” extremamente duvidosos. A mãe “especial” é muito vulnerável a esse tipo de assédio. Ela precisa tentar de tudo, TUDO MESMO, pra ajudar seu filho. E dá-lhe culpa. Muitos desses tratamentos são só inócuos, outros atrasam o emprego de métodos comprovadamente eficazes, alguns são só perigosos mesmo. E lá fica a mãe “especial”, perdida entre tantas escolhas e julgada por todos.
     Mas existe uma situação em que esse discurso da maternidade “especial” é ainda mais trágica. Trata-se da exploração por setores extremistas e patriarcais da nossa sociedade da culpa materna em caso aborto de fetos inviáveis, como os anencéfalos. Muitas mães “especiais” abdicam da própria vida em nome desse ideal de maternidade. É uma escolha dessas mulheres, claro. Mas não dá pra deixar de pensar que é uma escolha permeada de cobranças sociais, religiosas e machistas. Cobranças que jogam com a culpa dessas mulheres, tudo coberto pela embalagem da maternidade “especial”. É a imagem definitiva da “mãe acima de tudo”.
     Enfim, essa coisa de mãe “especial” é complicada demais. Até mesmo danosa. E o que o feminismo tem com isso? Bem, o feminismo tem como um de seus objetivos questionar os estereótipos ligados ao gênero, discutindo o que é ser mulher, o que é ser mãe e, por que não, o que é ser mãe “especial”. Muito pouco desse papel me parece ser “natural”. Na verdade, creio que a maior parte das implicações da maternidade “especial” é socialmente construída e mantida por forças patriarcais que se beneficiam dessa abnegação feminina.
     Da mulher que vai permanecer junto à criança doente quando abandonada por um companheiro insensível e egoísta, mantendo a ideia de unidade familiar a todo custo, passando pela mulher que abdica do trabalho e da saúde física e mental para dar sozinha assistência ao filho, até a mulher que sacrifica a vida mesmo sabendo que o feto não sobreviverá a ela, todas são versões de um ideal de maternidade que pouco beneficia a mulher. Restam como testemunhas abnegadas do descaso de seus companheiros e de um Estado que lucra com seu estoicismo. Penso que tanto essas mulheres quanto seus filhos ganhariam mais se esse ideal fosse questionado. A mãe “especial” não é super. Ela sou eu, pode ser você, pode ser sua irmã, esposa, companheira, filha, vizinha. Vai precisar da sua ajuda, vai precisar de amparo, colo, ombro amigo e uma ajudinha pra olhar a criança pra que ela descanse um pouco. Mas ela não precisa, com certeza, é de mais culpa.
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