quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Há Limites para o Humor ?



Esta sentença foi proferida pelo Culto Magistrado de São Paulo, Doutor Tom Alexandre Brandão, e publicada recentemente, em 3 de fevereiro de 2014. Cuida de um caso interessante que diz respeito aos limites do humor e envolve o conhecido humorista “RAFINHA BASTOS”.
Acompanhamos nos últimos anos o surgimento de novas e criativas formas de fazer humor. As vezes o humorista é ferino e agressivo ao usar fatos e acontecimentos extraídos da nossa realidade social para brincar. Em outras situações o humorista é grosseiro com personalidades públicas. Por conta dessa nova forma de fazer humor, que parece tem um bom público, nos perguntamos se deve haver algum limite para esta forma de expressão. Esta sentença trata justamente desse tema ao julgar uma ação civil publica ajuizada contra o humorista. Recomendo a leitura da excelente argumentação lançada pelo Douto Magistrado e que o leitor faça as suas reflexões. Podemos impor limites ao humor ?
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Vistos.
Trata-se de ação civil pública proposta pela ASSOCIAÇÃO DE PAIS E AMIGOS DOS EXCEPCIONAIS – APAE SÃO PAULO em face de RAFAEL BASTOS HOCSMAN.
Narra a petição inicial que o réu é o protagonista de um show de stand-up comedy intitulado “A Arte do Insulto”, comercializado em mídia “DVD” por todo o território nacional.
Afirma que o réu, humorista conhecido como “Rafinha Bastos”, “ganhou notoriedade nacional por enfrentar delicadas questões de natureza social, religiosa e étnica de maneira não raras vezes mais do que polêmica, insultosa, daí advindo naturalmente o título por ele próprio emprestado a seu show e respectivo DVD” (página 3).
Insurge-se a associação autora contra uma brincadeira que consta do aludido show, mais precisamente quando o humorista diz a seguinte passagem:
“um tempo atrás eu usei um preservativo com efeito retardante … efeito retardante … retardou … retardou … retardou … tive que internar meu pinto na APAE … tá completamente retardado hoje em dia … eu tiro ele prá fora e ele (grunhidos ininteligíveis)”
Questiona, ainda, outra intervenção do humorista que, no seu sentir, “derrapa no tom da elegância e esbarra na esfera de direitos tutelados pela Constituição Federal”, quando o réu defende seu posicionamento contrário à fila preferencial instituída por lei a idosos, pessoas com deficiência e outros:
“as pessoas na cadeira de rodas … ah, fila preferencial! Haha advinha amigo, você é o único que tá sentado. Espera quieto! Cala essa boca!”
A associação autora entende que saiu de cena a arte, restando apenas puro insulto à honra e imagem de pessoas com deficiência mental.
Deste modo, sustenta que o réu atingiu de modo violento a dignidade de todos aqueles que suportam a já dura e triste realidade de quem é acometido por deficiência de qualquer natureza. Recorre à Constituição Federal e à Declaração Universal dos Direitos Humanos para defender que todos têm direito à proteção contra qualquer discriminação.
Pede, ao final, uma tutela de natureza cominatória, mais precisamente para que o réu se abstenha de vender, dispor à venda ou fazer circular por qualquer meio ou forma o DVD com o show “A Arte do Insulto” ou, alternativamente, que retire menção feita à APAE e a pessoas com deficiência mental.
Requer que a ordem seja estendida para shows e apresentações do humorista, de maneira que não possam contemplar a associação autora ou pessoas com deficiência mental.
Pretende, ainda, a condenação do réu ao pagamento de (i) indenização pelos prejuízos causados à imagem da associação, (ii) ao valor de R$ 10.000,00 a cada associado que venha a se habilitar nos autos e, por fim, (iii) em quantia a ser destinada ao Fundo de Direitos Difusos (FDD).
A petição inicial, emendada, foi instruída com documentos.
Houve o deferimento da liminar pretendida (páginas 73/81). A decisão foi confirmada pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento do agravo de instrumento interposto pelo autor.
Citado, o réu ofereceu contestação, acompanhada de documentação. Em preliminar, defende a ilegitimidade ativa da autora, bem assim a inadequação da via escolhida para a defesa de direito individual da associação.
No mérito, argumenta que o humor desfruta de proteção constitucional e que não pode se sujeitar à censura ou repressão. Explica que as piadas não refletem a opinião pessoal do humorista e que têm como único objetivo divertir (animus jocandi).
Nega os danos reclamados.
A associação autora manifestou-se em réplica.
Parecer do Ministério Público opinando pela procedência parcial dos pedidos iniciais (páginas 341/359).
Realizada audiência de conciliação, infrutífera.
É o relatório. Decido.
Possível o julgamento antecipado, nos termos do artigo 330, I, do Código de Processo Civil. Desnecessária a instrução, sendo certo que os fatos que interessam ao deslinde do feito estão documentados nos autos.
Afasto a preliminar de ilegitimidade ativa, pois a autora tem entre as suas finalidades a defesa dos interesses das pessoas portadoras de deficiência mental que, em tese, poderiam sentir-se atingidas pelas piadas descritas na petição inicial.
Assiste razão ao réu, todavia, quanto à preliminar de inadequação da via eleita em relação a um dos pedidos. A ação civil pública não poderia deduzir pretensão de natureza individual e particular da associação autora, mais precisamente quando persegue proteção à própria imagem.
Prejudicado, assim, o pedido indenizatório no valor de R$ 100.000,00 pelos prejuízos alegadamente causados à imagem da associação autora (página 19, item C, ‘iii’).
No mais, não há outras preliminares ou nulidades aparentes.
Passo ao mérito.
Pese a orientação já sinalizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento do agravo de instrumento interposto pelo réu, ressalvo, com a devida vênia, o entendimento absolutamente distinto deste magistrado acerca da questão colocada em litígio.
O humor é uma importante forma de manifestação artística e cultural, instrumento relevante de compreensão dos grupos sociais ao longo da História. É, sobretudo, fruto de expressão do espírito e da inteligência.
Tormentoso estabelecer critérios científicos para definir e identificar o humor.
O assunto remete à discussão acerca da pornografia travada na Suprema Corte dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970. São emblemáticos os julgamentos daquele Tribunal que abordam os contornos do que poderia ser considerado como obscenidade e, portanto, passível de banimento.
Buscava-se a interpretação da primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, que impede edição de lei pelo Congresso que limite a liberdade de expressão .
Mais do que a análise do cotejo entre o direito individual à liberdade de expressão e autonomia privada para o consumo desse material e os interesses públicos supostamente violados pela propagação da pornografia, a questão ganhou relevo pela própria dificuldade em se definir o que poderia ser considerado como um material obsceno ou pornográfico.
O juiz Potter Stewart da Suprema Corte, ao abordar o problema, proferiu uma frase que se tornou célebre na jurisprudência norte-americana: “eu não consigo definir a obscenidade e talvez eu nunca consiga. Mas eu sei o que é quando a vejo” (tradução livre).
Evidente que, àquela época, os tempos eram bem diferentes. Questionava-se, inclusive, a possibilidade de publicação e distribuição de obras literárias com conteúdo considerado obsceno, o que hoje seria inimaginável.
Todavia, a dificuldade de se definir o que era pornografia guarda interesse.
O problema se repete no caso do humor. Como delimitar o que é humor para, apenas então, discutir se o Estado pode ou não interferir na liberdade de expressão. A exemplo da feliz observação do juiz norte-americano, qualquer pessoa tem capacidade de discernir, com um pouco de boa vontade e um mínimo de inteligência, o que é uma manifestação humorística, distinguindo-a de uma simples opinião.
Essa introdução parece-me relevante, pois a vedação ou limitação ao humor esbarra em valores constitucionalmente garantidos e direitos fundamentais, tais como a liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5º, IV, da Constituição Federal), da expressão da atividade artística (inciso IX) independentemente de censura ou licença, bem como o livre exercício da profissão (nas hipótese de comediante profissional).
O humor tem como uma das suas finalidades a diversão e, não raro, é marcado pela descontração; vale-se do exagero, da hipérbole e do absurdo para provocar o riso; é uma constatação banal, mas que deve ser tomada como premissa no caso dos autos, pois é absolutamente inadequado interpretar uma piada no seu sentido literal, tal como pretendido pela associação autora.
São interessantes as observações do professor Cláudio Luiz Bueno de Godoy[1]:
“(…) É verdade que, especialmente nesses casos (o autor se refere a programas humorísticos e caricaturas), os direitos da personalidade devem ser encarados sem se desconhecer que o exagero é ínsito àquelas manifestações de humor. Daí que, em si, o exagero não pode ser causa de dano à personalidade como o é em outros campos. Em diversos termos, apenas em condições extremas e explícitas será possível enxergar ofensa à honra ou à imagem, especialmente, derivada de manifestação exagerada, mas com finalidade humorística. Isso porque, afinal, como é evidente, o humor também não serve a mascarar ou a justificar conduta que seja deliberadamente ofensiva a outrem. Por certo que a roupagem humorística não constitui um salvo-conduto contra a infringência proposital a direitos da personalidade…”.
Nesse ponto, oportuna a distinção trazida por Manuel da Costa Andrade[2] acerca da roupagem e da mensagem ínsitas às manifestações humorísticas.
O humor, em regra, carrega uma roupagem própria e característica de sua forma de expressão, que, como visto, é marcada pelo exagero, muitas vezes pelo grotesco. E esse modo de linguagem, por óbvio, não pode gerar qualquer violação a direitos da personalidade. Em suas palavras:
“(…) à roupagem cabe, assim, uma função prevalentemente apelativa: emprestar visibilidade e força à mensagem a transmitir. Acresce que é sobretudo na roupagem que se actualiza a liberdade de criação artística da sátira e da carictura. O que confirma a expectativa já antecipada e segundo a qual a roupagem não colidirá normalmente com a dignidade pessoal. A acontecer, a colisão há-de, em princípio, levar-se à conta de custo social a suportar em nome da liberdade de criação artística. Em regra, ela aparecerá como socialmente adequada, não se revestindo daquela soziale auffälligkeit que na já citada formulação de Kakobs constitui a marca da tipicidade. E isto, importa sublinha-lo, postas entre parênteses as questões do bom gosto ou da velência estética da manifestação concreta da sátira ou caricatura.”
Vivemos num mundo aparentemente contraditório: de um lado, expandem-se formas novas formas de humor escrachado, como se percebe em programas televisivos, sites na internet ou em espetáculos de show do tipo stand up comedy”, como retratado nos autos.
Em contrapartida, é cada vez mais perceptível uma exacerbação da sensibilidade da opinião pública, avessa ao humor  “chulo” (ou talvez à explicitação dessa forma de humor) ou mesmo a qualquer tipo de exploração das diferenças.
É um reflexo do “politicamente correto”. Elias Thomé Saliba, professor titular de História da Universidade de São Paulo e profundo estudiosos do humor, aborda com propriedade esse fenômeno:
“(o politicamente correto) é uma criação ideológica característica de sociedades que perderam o norte dos padrões morais e acabaram por impor regras casuísticas tópicas, que só conseguem estabelecer limites arbitrários. Batizado com outros nomes ou disfarçado de alguma forma de censura, o ‘politicamente correto’ sempre existiu em sociedades que viveram momentos distópicos, quando a ausência de cenários futuros deixou de ensejar padrões morais estáveis. O resultado é um moralismo nervoso que se manifesta aqui e ali, meio esquizofrênico, tópico, que não sabe bem a que veio e, na história, nunca resultou em boa coisa.”
Manifestações humorísticas que eram bastante comuns e apreciadas no passado já não mais são aceitas pela sociedade contemporânea (ou por parte dela). Vale mencionar, como ilustração, um famoso programa humorístico dos anos 70 e 80 chamado “Os Trapalhões”, da Rede Globo de Televisão. Um dos participantes (Antônio Carlos Bernardes Gomes, cuja alcunha era “Mussum”), negro, era frequentemente associado à figura de um cachaceiro e de um macaco. À época, tais insinuações eram consideradas inocentes e perfeitamente assimiláveis pela audiência.
Essas mesmas piadas, acaso repetidas nos dias atuais, certamente gerariam enorme grita, quiçá com repercussão criminal.
A questão, inicialmente simples, convida à reflexão. Em realidade, é interessante perquirir o próprio conceito de ato ilícito e, no limite, a eficácia da intervenção do Direito como sistema de controle e organização social.
Considero que, no aspecto jurídico, a expressão humorística deve ser respeitada num grau extremamente elástico, independentemente do tipo, da qualidade e, inclusive, do assunto tratado. Mesmo os temas que consistem em tabus sociais podem ser objeto de humor. Exemplos ajudam a construir o raciocínio.
Em data recente houve uma polêmica acerca da instalação de uma estação de metrô em Higienópolis, tradicional bairro da cidade de São Paulo, que reúne grande concentração da comunidade judaica.
Em síntese, alguns moradores do bairro, tido como elitizado, supostamente questionaram a necessidade da linha metroviária no local, frequentado por “gente diferenciada” que não necessitaria daquele meio público de transporte. Não desejavam, em realidade, a popularização do bairro.
Diante da celeuma causada pela posição aparentemente segregadora, um humorista conhecido como “Danilo Gentili” utilizou-se das redes sociais para divulgar a seguinte piada: “entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz“, em clara referência ao campo de concentração nazista utilizado no período da Segunda Guerra para exterminar judeus.
Como é cada vez mais comum no cenário contemporâneo, em que as comunicações são verdadeiramente instantâneas, o texto gerou inúmeras críticas dos mais variados segmentos da sociedade, sendo certo que o episódio assumiu grandes proporções.
O humorista, de imediato, formulou pedido de desculpas na mesma rede social, pela qual afirmou que sua intenção, como comediante, nunca foi trazer nenhum outro sentimento ao público que não fosse alegria.
Pode-se questionar se o referido humorista foi feliz, ou não, em fazer uma brincadeira com uma matéria tão sensível. Pode-se mesmo afirmar que demonstrou grande falta de tato, até mesmo por formular essa piada numa rede social, cujo alcance é inimaginável.
Mas, a meu sentir, parece-me evidente que o humorista não cometeu qualquer ato ilícito ao simplesmente fazer uma piada que envolveu o judaísmo. Afirmar que ele corroborou a prática nazista seria uma conclusão absolutamente ridícula, hipócrita e desconectada com a realidade.
Na última virada de ano, o piloto alemão Michael Schumacher sofreu um gravíssimo acidente ao praticar esqui e permanece internado em estado de coma devido ao traumatismo craniano. Nesse mesmo período, o lutador Anderson Silva machucou-se seriamente em uma luta em que disputava o título mundial, na qual fraturou diversos ossos de sua perna.
Malgrado a repercussão mundial desses tristes acontecimentos, não tardaram surgir piadas envolvendo esses episódios nas redes sociais, tais como: “o Anderson Silva encontrou Michael Schumacher no hospital e tiveram uma conversa sem pé nem cabeça”.
A brincadeira foi infeliz? Talvez sim. Inoportuna, diante do sofrimento de fãs e familiares? Provavelmente. Engraçada ou espirituosa? Não interessa. Mas, há de se convir, quem conta essa piada não comete um ato ilícito e, tampouco, deseja o mal aos atletas. Apenas aproveita a ligação desses acontecimentos para fazer uma conexão humorística.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao caso dos autos.
Não é admissível sequer cogitar que o réu nutra algum tipo de desprezo em relação aos portadores de deficiência física ou mental, assim como não é possível afirmar que as pessoas em geral tenham efetivamente problemas em relação às loiras, aos portugueses, aos gagos…
Qualquer piada, desde a mais singela possível, pode dar azo a uma interpretação cruel. Ora, quem brinca dizendo que “mulher no volante, perigo constante” (minha avó fazia essa brincadeira!) pode ser tachado de machista, sexista, insensível à igualdade dos sexos, às conquistas das mulheres nas últimas décadas etc.
Tudo isso para dizer que uma piada é, afinal, apenas uma piada. Simples manifestação cultural, um costume social, um atributo da inteligência humana. Não há, em regra, uma ofensa a quem quer que seja. A pior consequência de uma piada infeliz, que cruza os limites toleráveis da audiência, é o desprezo, o silêncio.
Há, por certo, pertinência em analisar os limites do humor. Mas isso apenas em outra perspectiva, fora do espectro do Direito, notadamente da responsabilidade civil. A ideia do politicamente correto ou mesmo os valores implícitos que motivam a existência ou receptividade de determinado tipo de humor devem ser (como de fato são) estudadas pelas ciências sociais e pela psicologia.
Pode-se sofisticar o raciocínio e cogitar que o humor tem uma função de violência simbólica (emprestando, de modo impróprio, um conceito de Pierre Bourdieu), perpetuando diferenças e preconceitos sob o manto disfarçado do cômico. São todas discussões plenamente válidas.
Mas, repito, afirmar que uma piada é um ato ilícito não me convence.
Atribuir ao Poder Judiciário a função de julgar uma piada é um verdadeiro nonsense: interpretar, com critérios tradicionais hermenêuticos do nosso ordenamento, uma manifestação humorística, equivale a propor uma ação de divórcio de Bentinho e Capitu, a instaurar um inquérito policial para investigar a morte de Odete Roitman ou, ainda, determinar a prisão dos atores que atuaram como mafiosos no filme “O Poderoso Chefão” por formação de quadrilha.
Essa é a linha que, portanto, impede a análise das piadas noticiadas na inicial. Penso que a intervenção do sistema jurídico nesse tema é inócuo.
Não se quer dizer que o humor poderá servir como excludente de responsabilidade em toda e qualquer manifestação. Evidente que é possível admitir, em determinadas situações, a colisão entre princípios fundamentais da liberdade de expressão e a proteção dos direitos da personalidade.
Mais exemplos para facilitar a fundamentação: um caso que ganhou destaque envolveu a atriz “Carolina Dieckmann” e o programa humorístico “Pânico na TV”, então exibido pela emissora “RedeTv”. Havia um quadro denominado “As Sandálias da Humildade”, no qual os integrantes da atração procuravam celebridades com perfil que associavam à “arrogância”, propondo (ou exigindo) a elas que calçassem as chamadas as “Sandálias da Humildade”, numa demonstração de sua “humildade”.
Vários artistas participaram da atração, contrariados ou não.
Ocorre que, no caso de Carolina Dieckmann, houve expressa recusa da artista em contribuir para o quadro.
Nas oportunidades em que era interpelada pelos comediantes, a atriz simplesmente os ignorava, demonstrando claramente que não gostaria de fazer parte da atração. Essa reação, em realidade, agradou aos humoristas, que passaram a realizar uma verdadeira perseguição à atriz. Tudo devidamente registrado pelas câmeras de televisão, sendo certo que os “capítulos da novela” eram semanalmente explorados no programa, catapultando os índices de audiência.
A situação chegou a tal extremo que a produção do programa contratou os serviços de um caminhão com um guindaste, instalando-o defronte à residência da atriz, com os humoristas fazendo de tudo para chamar sua atenção (com um megafone) em seu próprio apartamento. Carolina Dieckmann recorreu ao Poder Judiciário do Rio de Janeiro, obtendo sentença condenatória de indenização por danos morais e, ainda, tutela inibitória proibindo o programa de exibir sua imagem ou fazer qualquer referência ao seu nome .
Nesse caso, é cristalino que houve uma verdadeira perseguição à artista, comprometendo a sua vida diária e violando o seu direito de ir e vir, sua privacidade. Seria um despautério permitir que essa postura incisiva prevalecesse protegida pela roupagem de humor.
Da mesma forma, o humor pode ser intolerável quando destinado especificamente a alguém, constrangendo-o perante o grupo de trabalho, familiar ou social. Com efeito, há casos na jurisprudência que caracterizam assédio moral no ambiente de trabalho ou bullying escolar. Ainda que, no limite, tais gozações pudessem ser enquadradas como piadas, têm uma repercussão direta na esfera de personalidade da vítima, legitimando e impondo a atuação do sistema judicial.
Há, em tais hipóteses, um destinatário específico, uma vítima a ser protegida. A liberdade de expressão é exercida de modo abusivo e, como tal, deixa de configurar excludente de responsabilidade.
Não é, no meu entendimento, o caso dos autos, sendo certo que inexiste a prática de ato ilícito pelo réu, protegido que está pela regra do artigo 187 do Código Civil. Age em exercício regular de direito (liberdade de expressão e manifestação artística).
A ótica que me parece mais adequada é prestigiar a liberdade de expressão e da atividade artística, sem qualquer juízo de valor a respeito do conteúdo e, sobretudo, da qualidade do humor praticado.
Nesse ponto, não se pode deixar de observar o caráter elitista da observação constante da inicial no sentido de que o réu “derrapa no tom da elegância”. O humor, a todo sentir, não tem que ser necessariamente elegante ou inteligente. Aliás, seria presunçoso dizer que apenas o humor inteligente pode ser realizado.
Em decisão do Superior Tribunal de Justiça (Resp 736.015), a Ministra Nancy Andrighi assentou que “a questão paralela posta pelas recorrentes, a respeito do ‘nível’ do humor praticado pelo periódico – apontado como ‘chulo’ – não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas envolvidos; a prestação jurisdicional deve se limitar a dizer se houve ou não ofensa a direitos morais das pessoas envolvidas pela publicação.“
Prossegue afirmando que não cabe ao Judiciário “dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’. Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’ – e, só por isso, já dariam ensejo à compensação moral quando envolvessem uma dessas pessoas, categoria na qual as recorrentes expressamente se incluem logo na petição inicial do presente processo. A tarefa de examinar aquilo que se poderia chamar de ‘inteligência’ do humor praticado cabe, apenas, aos setores especializados da imprensa, que concedem prêmios aos artistas de acordo com o desempenho por eles demonstrado em suas obras“.
Em conclusão: o juiz não pode dizer se a piada é boa ou ruim, se o humor tem qualidade ou não tem.
Ante o exposto, julgo improcedentes os pedidos iniciais. Revogo a liminar anteriormente concedida.
Custas e despesas pela associação autora. Não há condenação em honorários.
São Paulo, 29 de janeiro de 2014


Publicado por Carlos Garbi em:
Civil, Constitucional, FAMÍLIA, Variedades
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