sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A ENGENHARIA DO AUTISMO


Quem é o psicólogo britânico que decidiu procurar entre profissionais da área de exatas as origens do transtorno que afeta a habilidade de se comunicar

O psicólogo Simon Baron-Cohen.
Sem medo de enfrentar controvérsias,
ele procura pelas origens do autismo
entre pessoas com inclinação para a matemática
      Eindhoven é o principal polo de tecnologia da Holanda. A cidade de 270 mil habitantes concentra duas importantes universidades tecnológicas e dezenas de indústrias de olho nos cérebros privilegiados formados lá. Nos últimos anos, as autoridades de saúde da cidade começaram a se dar conta de uma mudança. Não havia nenhum levantamento oficial, mas os especialistas tinham a sensação de atender mais crianças com autismo, um transtorno de desenvolvimento que atinge principalmente meninos e afeta a habilidade de relacionamento e comunicação.
      Os boatos despertaram a atenção do psicólogo britânico Simon Baron-Cohen, de 53 anos, diretor do Centro de Pesquisa em Autismo da Universidade de Cambridge.
     Baron-Cohen tem fama em seu campo por dois motivos. É primo do comediante Sacha Baron-Cohen, conhecido mundialmente pelo personagem  Borat, um jornalista do Cazaquistão politicamente incorreto e dono de um infame traje de banho verde-limão (quem viu não esquece).
     O segundo motivo que dá fama ao Baron-Cohen cientista e, provavelmente, o que mais lhe agrada são suas teorias polêmicas sobre as origens do autismo. Ele está longe de ser um oportunista. 
     É sempre cauteloso ao explicar a dimensão de suas descobertas. Mas tampouco foge de controvérsias     
       Para Baron-Cohen, o aumento de crianças com autismo, possivelmente o caso de Eindhoven, deve-se ao casamento entre pessoas com tendências autistas.
     Todo mundo conhece alguém assim: é o amigo da faculdade ou do trabalho com interesses muito específicos (pode ser organizar sua coleção de livros sobre trens ou colecionar espécies de um gênero de orquídea). Ele percebe facilmente padrões dispersos pelo cotidiano, como a sequência de funcionamento dos semáforos de uma avenida, e não tem muitos amigos.  
      Segundo Baron-Cohen, pessoas com esse perfil escolhem profissões que aproveitem essa facilidade para captar padrões. Tornam-se engenheiros, matemáticos, físicos, cientistas da computação.
 “Não estou dizendo que todos os engenheiros e matemáticos são autistas”, afirmou a ÉPOCA Baron-Cohen. “Mas é comum que, entre esses profissionais, existam mais pessoas com características compatíveis com autismo.”
      Há uma incidência maior de autismo entre matemáticos"Simon Baron-Cohen Esse tipo de habilidade está presente em todos nós, em maior ou menor grau. Entre os autistas, estaria absolutamente fora do normal.      
      Alguns são capazes de criar fórmulas matemáticas para calcular em que dia da semana caiu uma data passada e quando cairá no futuro. Nos profissionais das ciências exatas, “grandes sistematizadores”, segundo Baron-Cohen, essa capacidade estaria na fronteira entre o normal e o fora do comum. “Talvez, eles tenham apenas alguns dos genes do autismo e manifestam só algumas características”, diz. Como são atraídos por um tipo específico de profissão, se concentrariam em polos tecnológicos, onde conheceriam mulheres com interesses semelhantes e, provavelmente, também com alguns dos genes do autismo. Ao se casarem, teriam filhos autistas ao unir suas cargas genéticas.
      O caso de Eindhoven parecia a oportunidade perfeita para Baron-Cohen reunir evidências em favor de sua tese. Ele pediu que as escolas da cidade informassem o número de crianças autistas matriculadas. Fez o mesmo com escolas de outras duas cidades holandesas de tamanho semelhante – Haarlem e Utrecht –, mas cujas economias não são baseadas no setor tecnológico.
     A conclusão do estudo, divulgado há pouco mais de dois meses em uma importante publicação sobre autismo, parece confirmar as suspeitas de Baron-Cohen. Em Eindhoven, há entre duas e quatro vezes mais casos do que em Haarlem e Utrecht. A pesquisa foi a primeira a comparar a prevalência de autismo em um polo tecnológico com cidades de perfil econômico diferente. E, portanto, a provar cientificamente a relação. Mas a suspeita não é nova.
      O primeiro caso a chamar a atenção foi o da Califórnia, Estados Unidos. O Estado engloba o Vale do Silício, região que concentra algumas das principais empresas de tecnologia do mundo, como o Facebook, o Google e a Apple. Entre 1987 e 2007, segundo estatísticas do governo americano, o número de diagnósticos de autismo aumentou 1.148%. A população cresceu só 27%. 
     A ideia de que os pais de crianças com autismo tenham formas atenuadas da condição paira sobre o campo da psiquiatria desde o final da década de 1980. Mas foi Baron-Cohen que tomou para si a tarefa de provar ou refutar a teoria. Em sua busca pelas origens do autismo, já analisou milhares de familiares de matemáticos e engenheiros. As conclusões reforçam sua tese.
     Entre 1.405 parentes de estudantes de matemática, ele encontrou sete casos de transtornos semelhantes ao autismo. Nas famílias de universitários de outras áreas, achou apenas dois.   Em um estudo com crianças autistas, a probabilidade de que o pai da criança ou um dos avôs fosse engenheiro era duas vezes maior.
      A teoria, claro, é polêmica. “Esses achados precisam ser reproduzidos por outros estudos para que sejam considerados”, diz a psiquiatra Letícia Amorim, da Associação de Amigos do Autista. Os cientistas não têm certeza nem das origens genéticas do autismo. Não sabem se o transtorno é causado por dois ou 200 genes.      
      Logo, é difícil procurar por eles entre matemáticos e engenheiros. Além disso, existe a dificuldade de fazer o diagnóstico.
      Há um espectro de condições relacionadas ao autismo, algo parecido com uma escala. Pessoas com as formas mais graves têm quociente menor de inteligência, não desenvolvem a linguagem e não conseguem se relacionar. Na outra ponta da escala, os pacientes podem ter o quociente de inteligência acima da média da população e menos dificuldade para interagir socialmente.
     Baron-Cohen acredita que os físicos Albert   Einstein e Isaac Newton, criadores das teorias que explicam o Universo, estavam nesse extremo do espectro, uma síndrome conhecida como Asperger. Em alguns casos, a fronteira entre a síndrome e o considerado “normal” é tão tênue que é difícil saber se pais de crianças autistas, possivelmente os matemáticos e engenheiros da teoria de Baron-Cohen, também não são eles mesmos Aspergers. Isso torna ainda mais complicado provar a teoria das tendências autistas.
     Baron-Cohen diz que toda essa polêmica é por bons motivos. Porque ajuda os especialistas a entender como os autistas pensam e a refinar estratégias de aprendizagem destinadas a crianças com o transtorno. Além disso, serviria para mudar o olhar da sociedade. “Ao mostrar que esses traços podem estar presentes em profissionais, percebemos que o autismo engloba habilidades e até talentos”, diz.

Marcela Buscato
Revista Época - 16.09.2011
Foto: Brian Harris/Rex Features/Glow Images

INCLUINDO AUTISTAS NA CIÊNCIA

Alysson Muotri
     Quando se fala em indivíduos autistas, a maioria imagina pessoas isoladas socialmente, com dificuldade em comunicação e envolvidas em comportamentos repetitivos e estereotipados. De fato, para ser considerado dentro do espectro autista, basta apresentar sintomas relacionados a essas características.     Porém, essa definição é restrita, rasa, e não reflete a condição autista em sua totalidade. O lado positivo do autismo é pouco lembrado, o que contribui para problemas de inclusão social.
Indivíduos autistas são extremamente focados e conseguem se dedicar a uma atividade especifica por muito tempo. Em geral, essa dedicação vem acompanhada de uma atenção aos detalhes, sensibilidade ao ambiente e capacidade de raciocínio acima do normal, o que colocaria essas pessoas em vantagem em determinadas situações. Uma dessas situações está presente justamente em alguns aspectos do processo científicos.
     A ciência não vive apenas de criatividade e pensamento abstrato. Na verdade, a maioria dos cientistas segue uma carreira metódica, racional, com incrementos sequenciais no processo de descoberta científica.  Esse trabalho exige atenção e dedicação acima do normal, por isso mesmo cientistas acabam sendo “selecionados” para esse tipo de atividade. O momento de “eureca” é extremamente raro na ciência.
     Da mesma forma, são raros os casos de autistas superdotados, com capacidades extraordinárias. Esse tipo de característica, retratada no filme RainMan, acaba ajudando esses indivíduos a se estabelecerem de forma independente. É o caso de Stephen Wiltshire que vive de sua arte porque consegue desenhar em três dimensões uma cidade inteira após sobrevoá-la de helicóptero uma única vez. Mas e no caso dos outros indivíduos, que não necessariamente possuem uma habilidade tão evidente? Será que poderíamos incorporá-los em alguma outra atividade aonde suas características sejam de grande vantagem?
Indivíduos autistas usam o cérebro de forma diferente. Regiões do cérebro relacionadas ao processo visual são, em geral, bem mais acentuadas. Por isso mesmo, autistas conseguem perceber variações em padrões repetidos mais rapidamente e com mais precisão do que pessoas “normais”, ou fora do espectro autista.      Autistas também superam não-autistas em detectar variações em frequências sonoras, visualização de estruturas complexas e manipulação mental de objetos tridimensionais.
     Retardo intelectual é, quase sempre, relacionado ao autismo. Mas vale lembrar que a maioria dos testes utiliza linguagem verbal, o que coloca os autistas em desvantagem. Esse tipo de abordagem merece uma revisão mais criteriosa. Aposto que se refizéssemos algumas dessas pesquisas os resultados seriam diferentes e contribuiriam para a redução do preconceito.
     Muitos autistas poderiam ser aproveitados pela academia. Desde cedo, esses indivíduos demonstram profundo interesse em informações, números, geografia, dados, enfim, tudo que é necessário para a formação de um pensamento científico. Além disso, possuem capacidade autodidática e podem se tornar especialistas em determinada área – ambas as características são importantes no cientista. Algumas das vantagens intelectuais (e mesmo pessoais) de indivíduos autistas acabam sendo atraentes em laboratórios científicos. Não me interprete mal, não estou sugerindo o uso de autistas como objeto de estudo (o que já acontece e é útil também), mas como agentes da descoberta cientifica.
     Tenho certeza de que poderíamos incluir cientistas autistas no contexto de descoberta cientifica atual e explorar esse tipo de inteligência. Um exemplo disso é o laboratório do Dr. Laurent Mottron, que trabalha com a cientista-autista Michelle Dawson faz 7 anos. Laurent descreveu recentemente sua experiência empregando cientistas autistas na última edição da revista Nature. Michelle tem a capacidade de manusear mentalmente um número enorme de dados ao mesmo tempo, faz isso naturalmente. E enquanto não conseguimos nem lembrar o que vestimos ontem, autistas como Michelle nos surpreendem com uma memoria impecável.
     Ela recorda todos os dados gerados do laboratório e tem papel fundamental no desenho de experimentos de outros cientistas. Juntos, Laurent e Michelle já assinaram mais de 14 trabalhos juntos.    Outro exemplo clássico é Temple Grandin, autista que obteve seu PhD em veterinária e, usando seu raciocínio visual, desenvolveu novos protocolos para redução de estresse em animais para o consumo de carne. Grandin é atualmente professora da Universidade Estadual do Colorado, nos EUA.
     Acredito que autistas podem dar uma contribuição excepcional para o mundo se conseguirmos colocá-los no ambiente ideal. É um desafio social, mas que começa com a conscientização da condição autista.    Organizações internacionais já existem com a finalidade de auxiliar autistas a se encaixarem no mercado de trabalho. Exemplos são as firmas Aspiritech, nos EUA, e Specialisterne, na Holanda. Com o tempo, outros lugares vão perceber que a mão-de-obra autista é extremamente especializada e começarão a explorar esse nicho.
     Obviamente o autismo traz limitações, como o entrosamento social, problemas motores e a dificuldade de comunicação. Com isso, eles não vão conseguir se adaptar facilmente a trabalhos que envolvam comunicação social intensa. Em casos mais graves, muito provavelmente, vão depender da sociedade por toda a vida. Ignorar essas limitações é tão prejudicial quanto ignorar as vantagens que o autismo pode oferecer nos casos mais leves. Talvez o maior reflexo de uma sociedade avançada esteja em como ela acomoda suas minorias. Enquanto as oportunidades terapêuticas para o autismo não chegam, acredito que o que esses indivíduos mais precisam agora seja respeito, inclusão e, acima de tudo, oportunidades.

Fonte:
G1 - Globo Ponto.Com
Foto: Revista Época



Pitoco confundindo