terça-feira, 18 de dezembro de 2012

* Nasrudin e o Autismo

 (Uma sucinta parábola destinada a injetar reticências nos cérebros privilegiados de Deusina Lopes e Diva Cleide Calles, minhas diletas e lindas amigas, e em outros cérebros que aceitarem ousar).
*Manuel Vázquez Gil
A cena é uma criação imaginativa, mas os fatos e resultados são reais, verificáveis em um monte de lugares nesta vasta rede mundial: a maior potência econômica e militar do planeta aprovou um projeto ambicioso, com o apoio da ONU e de todos os países filiados. Escolheu os dez melhores analistas forenses da atualidade e disponibilizou-lhes o mais completo laboratório, o do FBI.
Inicialmente, enviou a eles dez amostras de saliva apenas numeradas, sem qualquer informação e pediu-lhes uma análise detalhada. Em pouco tempo, as planilhas mostravam resultados conclusivos: a amostra 1 correspondia a um sujeito Down, a 2 a um Rett, a 3 a sujeito com fenilcetonúria, a 4 era de um com síndrome de Williams  o sujeito 5 tinha predisposição a câncer de mama, o 6 era Xfrágil, o 7 tinha ELA, o 8 tinha predisposição a diabetes, a 9 estava grávida na 26ª semana e o 10 era geneticamente saudável.
Numa segunda etapa, enviou cinco mil amostras de saliva, todas de autistas, com o pedido de encontrar um denominador comum. O resultado das planilhas mostrou que não havia dois sujeitos com alterações genéticas iguais. Receberam uma ordem de repetir os testes, revisar procedimentos e planilhas. O mesmo resultado foi mostrado.
Numa manhã de inverno, o assessor especial da presidência para o projeto em curso apareceu no laboratório. Reuniu a equipe de gênios e abriu o jogo: um projeto tão dispendioso e importante não poderia apresentar não-resultados, era preciso encontrar algo. Se verificassem um a um, não encontrariam mutações?
Ah! Visto assim é diferente! A amostra 6 apresenta mutação no gene AM8K; a 98 tem teor de zinco acima do normal; a 222 mostra uma atipia no cromossomo 16; a 3448 tem intolerância a glúten; a 3905 tem uma mutação no gene ADR3LB e a 5000 demonstra tendência a hipertensão.
Muito bem, usemos isso. Apresente o relatório dessas cinco amostras e vamos traçar procedimentos de intervenções medicamentosas e terapêuticas para elas.
E as outras 4995 o que fazemos com elas?
As outras são desvios estatísticos.
Trinta anos atrás, eu já tinha trinta anos e era au...au...au...eu tinha aquele negócio! Parece que foi ontem, mas era uma sociedade extremamente preconceituosa, onde as crianças normais não podiam brincar com Mongolóides (era como se chamavam Downs), epilépticos morriam durante uma convulsão porque ninguém chegava perto, ninguém tinha câncer, tinha “a doença”, loucos e alcoólatras eram segregados em sanatórios até que a morte os libertasse, homossexuais eram agredidos e até mortos, empalados, soropositivos perdiam tudo, incluindo a liberdade e au...au...aqueles caras estranhos que tinham aqueles comportamentos estranhos eram presos em clínicas, quartos, sótãos e porões.
Nessa escuridão total, a errática ciência decidiu que aqueles caras estranhos eram doentes que precisavam ser tratados como doentes mentais. Terapias surgiram e cresceram com o objetivo de arrancar pedaços deles sob a desculpa que os rituais tinham que ser extintos. Psicotrópicos cuidavam de deixá-los anestesiados para que não machucassem ninguém. Escolas especiais cuidavam dos poucos que ainda iam para a escola, mantendo-os à distância da sociedade normal.
Duas gerações inteiras de autistas perdidas no grande túnel da prepotente ciência.
Se há uma coisa da qual nossa geração pode se orgulhar é o salto que conseguimos sobre o preconceito. Ficou a hipocrisia, mas o preconceito como marca de uma sociedade inteira se esvaiu. Brincamos com Downs, convivemos com soropositivos, auxiliamos epilépticos, já temos câncer, loucos estão em casa, alcoólatras são tratados e acolhidos pela família, temos amigos gays, que às vezes são até nossos companheiros, pais e mães dos nossos filhos.
Mas aqueles caras estranhos que fazem coisas estranhas ainda são vistos e tratados como diferentes, inclusive por seus próprios pais. Somo lógicos e racionais: diante de uma condição médica, buscamos soluções médicas, então levamos nosso cara estranho ao psiquiatra; diante de uma condição psicológica, buscamos soluções psicológicas, então levamos nosso cara estranho para extinguir “rituais”; diante de uma condição social, buscamos soluções sociais, então fazemos de tudo para que se pareça conosco.
Além disso, temos informações da grande pesquisa do grande projeto. Precisamos fazer quelação no nosso cara estranho, não havia uma amostra com metais acima da média? Também dieta alimentar, afinal há uma comprovada intolerância ao glúten. E aquelas três amostras com mutações genéticas? Viu, não falei? O autismo é genético, precisamos encontrar a cura.
Todos encontraram a luz no fim do túnel, apenas nós nos apegamos a dogmas mais antigos do que eu.
Podemos mudar a cena, mas só se quebrarmos dogmas e adotarmos novos paradigmas. Que tal decretar a falência de tudo o que fizemos com nossos filhos hoje adultos, e que comprovadamente não trouxe grandes resultados em termos de lhe conferir autonomia, e aceitarmos o fato que grita diante de nós eu esses caras estranhos que fazem coisas estranhas são pessoas, seres humanos iguais a nós com seu jeito peculiar de pensar e ver o mundo? Que tal dar-lhes alta e conferir-lhes o status de cidadãos plenos?
Há uma multidão de crianças autistas chegando aos nossos lares hoje, neste momento. Vamos acolhê-los, aceitá-los, amá-los, protegê-los e educá-los como educaríamos qualquer filho ou vamos repetir a mesma história, no mesmo túnel, com as mesmas “verdades” de uma atarantada ciência?
Como a sociedade pode ver nossos filhos com naturalidade, se nós, os pais, fazemos questão diuturna de mostrar que eles são diferentes, os caras estranhos que fazem coisas estranhas e, por isso mesmo, têm que ter tratamentos diferenciados em qualquer lugar que frequentem? Você se lembra de Rain Man? Um menino pequeno au...au...au...enfim, aquilo, que foi internado pelo pai numa clínica até que a morte o libertasse porque os médicos o convenceram de que ele poderia machucar o irmão menor.
Que saída nossas crianças têm? São levados costumeiramente a um psiquiatra, portanto só pode ser doente mental; enquanto os amigos e irmãos assistem o desenho, ele visita a psicóloga, que vai arrancar dele aqueles gestos estranhos, portanto ele é um cara estranho; é o único da classe que tem provas diferentes em horários diferentes e que tem uma babá só pra ele, portanto ele é diferente. Não pode lutar contra isso e vencer toda aquela gente grande.
Crianças são frutos do meio em que vivem. Adultos são os construtores do meio.
Quando o andarilho chegou à porta da cidade, *Nasrudin aproveitava a sombra da oliveira. O andarilho cumprimentou-o e perguntou:
-Eu estou mudando de cidade, como é o povo daqui?
-Como é o povo da cidade em que você mora? – retrucou Nasrudin
-Egoísta, interesseiro, barulhento, cada um só pensa em si e ninguém ajuda ninguém.
-O povo daqui também é assim, disse Nasrudin.
No dia seguinte, no mesmo local, outro andarilho se aproximou e fez a mesma pergunta:
-Como é o povo na cidade onde você mora?
-Fraterno, companheiro, acolhedor, como uma grande família.
-O povo daqui também é assim, completou Nasrudin.

 *Manuel Vázquez Gil 
é pai de autista,
  
Psicólogo, mestre e doutor em Psicanálise, 

com cursos de extensão de ensino da Matemática e Alfabetização para Autistas, 
Dislexia e Transtornos do Aprendizado, 
coordena um projeto que considera o autismo como um dom a ser desenvolvido pela criança, 
com auxílio da família e da escola.



 * Nasrudin, O “Mullah" como ficou famoso, na realidade é um personagem desconhecido, que muitos dizem ter existido e vivido durante o século 13 na Anatólia. Ele nasceu no vilarejo de Hortu em Sivrihisar, Eskisehir; depois morou em Aksehir e mais tarde em Konya, onde por fim morreu. Alguns alegam que ele tenha sido apenas um personagem mitológico. Entretanto, várias nações do Oriente Próximo, Oriente Médio e Ásia Central reivindicam o sábio como seu (Afeganistão, Turquia, Irã, Índia e outros). 
Osho dizia; “nunca eu amei alguém como amei Nasrudin. Ele é um dos homens que aproximou a religião do riso.”