sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A culpa da mãe

Luana, de 21 anos, durante a gestação de SofiaEstar grávida hoje em dia é um desafio e nunca foi tão estressante. A lista de coisas que pode e não pode é enorme. A relação de fatores de risco pré-natal tem invadido a mídia: gripe, antidepressivos, açúcar, gordura, café, sushi, gatos, tipo de música, muito (ou pouco) exercício físico e até a idade das mães são assuntos do momento. E se a futura mamãe ficar ansiosa ou estressada, ainda terá que conviver com olhares de reprovação social.

Na história da medicina, não faltam exemplos mostrando como experiências uterinas afetam os descendentes. Existe uma verdadeira fixação e fascinação dos pesquisadores sobre o assunto. Faz sentido, afinal durantes os 9 meses iniciais de nossa vida esse foi nosso único ambiente e onde ocorrem etapas cruciais do desenvolvimento humano. Não existe nada de errado nesse tipo de estudo, mas o foco demasiado em cima das mães chamou até a atenção dos pesquisadores nessa área que decidiram dar um “toque” aos jornalistas de ciência. Um editorial recém publicado na Nature, de autoria da pesquisadora Sarah Richardson, chama a atenção para o problema. Abaixo eu ressalto alguns dos exemplos citados e incluo outros, aproveitando para opinar como cientista nesse assunto.
Ultimamente, diversos assuntos relacionados ao tema têm destacado as alterações epigenéticas (análise de modificações hereditárias no DNA que influenciam a atividade dos genes sem alterar a sequencia genética). Essas alterações implicam riscos de obesidade, diabetes e resposta a estresse durante o desenvolvimento das crianças.
Como o assunto é altamente complexo sob a perspectiva molecular, e também multifatorial, a mídia tende a simplificar o assunto, focando apenas no impacto materno. Manchetes como “Dieta materna altera o DNA do feto” ou “Grávidas sobreviventes de desastres transmitem o trauma para os filhos” são relativamente comuns de se achar em jornais e revistas de grande circulação. Fatores como a contribuição paterna, a vida em família e o ambiente social recebem muito menos atenção. Como consequência, existe um sentimento de culpa e vigilância desnecessários em mulheres grávidas e mães em geral.
Existem diversos exemplos de como a sociedade culpa as mães por doenças dos filhos. Evidencias científicas de que o álcool em excesso pode causar complicações e má formações durante a gestação levou à recomendação de que mulheres grávidas evitassem a bebida. O consumo alcóolico durante a gravidez foi estigmatizado e até criminalizado. Bares e restaurantes são obrigados avisar que a bebida causa defeitos congênitos nos EUA, mesmo que não existam evidências sugerindo qualquer problema com o consumo moderado. Aliás, mulheres que bebiam moderadamente passaram a evitar o consumo durante a gravidez, mas o número de crianças vítimas do abuso de álcool não diminuiu. Como consequência, a visão da mulher grávida tomando um drink é hoje em dia altamente condenável para a maioria das pessoas e faz com que agonizem a gestação toda por um golinho ocasional.
Nos anos 80 e 90, o uso de crack criou uma histeria midiática com os famigerados “filhos do crack” – crianças nascidas de mulheres viciadas e que foram expostas à droga ainda no útero. Grávidas dependentes de drogas perderam benefícios sociais, a guarda dos filhos e muitas acabaram na prisão, a grande maioria negras e pobres, condenadas por expor fetos indefesos à droga. Os filhos também sofreram, estigmatizados e condenados ao fracasso social desde o nascimento. Hoje sabemos que a exposição do feto ao crack ou cocaína é considerado tão nocivo quanto ao cigarro ou álcool em excesso. Mesmo assim, apenas usuárias de drogas são condenadas criminalmente nos EUA.
Outro exemplo clássico de “culpa materna” é o conceito de mãe-geladeira (uma metáfora que sugere o desapego e frieza emocional), dando origem a crianças autistas nos anos 50-70. E não faz muito tempo atrás que diversos livros médicos ainda atribuíam alterações mentais e tendências criminais a uma postura materna, inclusive as amizades durante a gestação, ignorando completamente as origens biológicas dessas condições e diversos outros fatores ambientais. Suporte inadequado a mulheres grávidas e afirmações pouco contextualizadas ainda hoje são encontradas em materiais educacionais com boas intenções. Duvida? Veja no website montado pelo Imperial College London que mostra um adolescente saindo da prisão e sugere que cuidados pré-natais poderiam auxiliar no combate ao crime. Inacreditável, não?
Por isso que o foco materno das pesquisas epigenéticas ainda lembra esse tipo de atitude do passado, colocando todo o contexto social e diversos outros fatores em segundo plano. Outro erro comum que ainda persiste é o de estabelecer causa e efeito. Novamente, estudos com autismo são notórios por isso. Ao relacionar a incidência de autismo com fatores externos (vacinas, morar perto de avenidas ou de antenas de celulares), muitas reportagens não deixam claro que a conclusão é apenas correlacional e evitam mencionar dados inconsistentes (por exemplo, a correlação estatística desaparece se consideramos idades diferentes ou outra variável).
Para evitar que esse tipo de atitude continue, tanto a mídia quanto os leitores teriam que ser mais críticos cientificamente. Primeiro, evitando extrapolar estudos com camundongos para humanos. Segundo, balanceando o papel tanto do pai quanto da mãe. Terceiro, demonstrando complexidade no assunto ao mostrar que diversos fatores variáveis acontecem ao mesmo tempo, sendo muitos desconhecidos. E por final, reconhecendo o papel da sociedade, principalmente ao apontar soluções para o problema.
Os métodos e a tecnologia científica têm aumentado consideravelmente em complexidade nos últimos dez anos. A tendência é que isso seja exponencial, ou seja, cada vez mais difícil de se traduzir para uma linguagem leiga e simples. Por isso mesmo, a sociedade tem que ser mais crítica, exigindo melhores formas de comunicação científica da mídia e dos próprios cientistas. Acho que isso vai auxiliar no entendimento das pesquisas, sem apontar culpados ou restringir a liberdade das futuras mães.

* Foto: Luana Siqueira/Arquivo Pessoal
FONTE:
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/blog/espiral/post/culpa-da-mae.html

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Cérebro de crianças autistas possuem sinapses demais, sugere estudo.

Lançando nova luz sobre o funcionamento do cérebro no autismo, um novo estudo sugere que há um excesso de sinapses em pelo menos algumas partes dos cérebros de crianças com autismo, e que a capacidade do cérebro de reduzir o número dessas sinapses é comprometida.

O estudo, publicado na quinta-feira (21) na revista “Neuron”, envolveu tecido dos cérebros de crianças e adolescentes que morreram com idades entre 2 a 20 anos. Cerca da metade das crianças tinha autismo, as outras não.
Os pesquisadores, do Centro Médico da Universidade de Columbia, olharam atentamente para uma área do lobo temporal do cérebro envolvido no comportamento social e na comunicação. Analisando o tecido de 20 dos cérebros, eles contaram os espinhos dendríticos nos neurônios e encontraram mais espinhos nas crianças com autismo. Os espinhos se ramificam de um neurônio e recebem sinais de outros neurônios por meio de conexões chamadas sinapses, de modo que mais espinhos indicam mais sinapses.
No desenvolvimento saudável do cérebro, há uma explosão de sinapses muito cedo e depois tem início um processo de “poda” (diminuição das sinapses). Esse processo é necessário para assegurar que diferentes áreas do cérebro possam desenvolver funções específicas e não fiquem sobrecarregadas de estímulos.
A equipe de Columbia descobriu que nas idades mais jovens, o número de espinhos não difere muito entre os dois grupos de crianças, mas os adolescentes com autismo possuem significativamente mais espinhos que aqueles sem autismo. Jovens saudáveis de 19 anos tinham 41% menos sinapses do que crianças pequenas saudáveis, mas os autistas no final da adolescência apresentavam apenas 16% menos do que as crianças pequenas com autismo.
Uma criança com autismo que tinha 3 anos quando morreu tinha muito mais sinapses do que qualquer criança saudável de qualquer idade, disse David Sulzer, um neurobiólogo e principal investigador do estudo.
Os especialistas disseram que o fato de as crianças pequenas de ambos os grupos apresentarem aproximadamente o mesmo número de sinapses sugere um problema de poda no autismo, não um problema de produção excessiva.
“Mais não significa melhor quando se trata de sinapses, e a poda é absolutamente essencial”, disse Lisa Boulanger, uma bióloga molecular de Princeton, que não esteve envolvida na pesquisa. “Se fosse um crescimento excessivo, a expectativa é de que elas seriam diferentes desde o começo, mas como a diferença de sinapses ocorre posteriormente, trata-se provavelmente da poda.”
A equipe de Sulzer também encontrou biomarcadores e proteínas nos cérebros com autismo, refletindo mau funcionamento nos sistemas de remoção de células velhas e degradadas, um processo chamado autofagia.
“Eles mostram que esses marcadores de autofagia diminuem” nos cérebros afetados pelo autismo, disse Eric Klann, um professor de ciência neural da Universidade de Nova York. “Sem a autofagia, essa poda não pode ocorrer.”
As descobertas são as mais recentes em uma área da pesquisa do autismo que está atraindo crescente interesse. Há anos os cientistas debatem se o autismo é um problema de cérebros com conectividade insuficiente ou excessiva, ou alguma combinação.
Ralph-Axel Müller, um neurocientista da Universidade Estadual de San Diego, disse que há crescente evidência de conectividade excessiva, inclusive a partir dos estudos de imagens do cérebro que ele conduziu.
“As deficiências que vemos no autismo parecem ocorrer em diferentes partes do cérebro, conversando demais umas com as outras”, disse. “É preciso perder parte dessas conexões para um desenvolvimento ajustado do sistema das redes cerebrais, porque se todas as partes do cérebro conversarem com todas as partes do cérebro, só se obtém ruído, não comunicação.”
Mais sinapses também criam oportunidade para ataques epilépticos, porque há sinais elétricos em excesso sendo transmitidos no cérebro, prosseguiu Klann. Mais de um terço das pessoas com autismo tem epilepsia, segundo ele.
Tradutor: George El Khouri Andolfato

Fonte: UOL.com.br
Foto - Google.

sábado, 9 de agosto de 2014

AUTISMO: Na contramão: Nacional adota preços populares e se destaca por doações

 Clube paraguaio dará renda de setor Norte do Defensores a ONG de apoio a pessoas com autismo: "Somos pequenos. O êxito econômico não nos interessa", diz dirigente.
Doação Nacional-PAR (Foto: Daniel Mundim)
Folder da final da Liberadores avisava que parte da renda seria doada à EPA 
Foto: Divulgação)

Termine a equação: final histórica mais paixão da torcida é igual a... ingressos caros. Ao menos é o que se espera da maioria dos clubes brasileiros. Diante de suas limitações financeiras, o Nacional-PAR poderia seguir o exemplo. O modesto clube paraguaio teve uma ótima oportunidade para tentar arrecadar muito dinheiro. Mas não o fez. Não bastasse cobrar cerca de R$ 42 pelos ingressos mais caros para o duelo com o San Lorenzo, o clube doou parte da renda para uma ONG de apoio a pessoas com autismo.
Toda a arrecadação obtida com a venda de bilhetes para a Galeria Norte, setor popular do Defensores del Chaco, foi destinada ao grupo “Esperança para o Autismo”. Quem acompanhou a final contra o San Lorenzo pôde ver uma grande bandeira com o agradecimento da ONG: “Gracias Nacional!!! Esperanza Para el Autismo”. Mas não foi a primeira vez que o Nacional Querido se destacou pela solidariedade. Desde o duelo contra o Independiente Santa Fé, na última rodada da primeira fase, quando começou a atuar no Defensores del Chaco, o Trico agracia instituições de caridade.  
ONG de apoio a pessoas com autismo estende faixa uma no estádio Defensores del Chaco em agradecimento à doação feita pelo Nacional-PAR após a primeira partida da final da Taça Libertadores contra o San Lorenzo (Foto: Daniel Mundim)
Doação Nacional-PAR (Foto: Daniel Mundim)
Contra o time colombiano, a entrada na mesma Galeria Norte foi realizada com alimentos não perecíveis, que foram destinados a um albergue para 400 crianças. Nas oitavas de final, diante do Vélez Sarsfield, a renda arrecadada no mesmo setor foi para a Fundação Asoleu, que atende crianças com câncer. Nas quartas de final, a Fundação Pequeno Cottolengo “Don Orione”, que cuida de pessoas com necessidades especiais, recebeu as doações provenientes do duelo contra o Arsenal de Sarandí. Quando recebeu o Defensor, já na semifinal, a instituição escolhida foi um asilo. Em cada jogo da Libertadores, a quantidade doada foi de cerca de R$ 10 mil.  

Doação Nacional-PAR (Foto: Daniel Mundim)
Ingrid Mezgolits ficou surpresa com a atitude do Nacional-PAR na decisão (Foto: Daniel Mundim)
Ingrid Mezgolits, coordenadora do grupo Esperança para o Autismo (EPA), e torcedora do Cerro Porteño, recebeu com surpresa o contato do Nacional. Espera uma doação de cerca de R$ 45 mil, referentes ao setor Norte, que tiveram ingressos a R$ 10. Mas o resultado da atitude do clube paraguaio não foi apenas o dinheiro. A exibição da faixa ampliou as fronteiras da entidade, que atende cerca de mil pessoas com autismo e vive de doações, eventos e venda de produtos próprios.  
- Nos surpreendeu muito. Na semana passada, o senhor Harrison, presidente do Nacional, avisou a um dos membros da EPA que as doações seriam para nossa instituição. Sei que o Nacional faz isso sempre. Nunca esperava, estou muita agradecida ao Nacional. Recebemos uma carta de Buenos Aires, de um argentino pai de um filho que tem autismo nos dizendo que se emocionou muito ao ver a bandeira na televisão. Disse que não compreendia bem o que via, mas que se emocionou ao ver que a luta contra o autismo está aqui. Depois recebemos uma mensagem do Peru, que também viu a bandeira no estádio.
“No momento, o êxito econômico não nos interessa”  
Em tempos de profissionalismo, a postura do clube paraguaio chama a atenção. O Nacional-PAR arrecadou cerca de R$ 500 mil – 1,078 bilhão de guaranis –, muito menos dos mais de R$ 14 milhões ganhados pelo Atlético-MG na final da Libertadores do ano passado. Entretanto, a presença inédita na decisão não mudou a política do Querido, que, ao menos por enquanto, não pensa em fazer lucro, mas sim, ver o estádio cheio para se fortalecer como mandante.
- Somos um time pequeno. No momento, o êxito econômico não nos interessa. Tem que ter êxito esportivo, não se pode fazer as duas coisas na nossa situação. Ou tentamos lucrar, ou temos estádio cheio. Para nós, ser forte localmente é o ideal. Se ganhar fora, é bom, mas em casa é melhor. Por isso os ingressos baratos. A partir daí veio a ideia das doações, que partiu do presidente Robert Harrisson. O futebol está ligado à sociedade, sobretudo com os que menos têm, os mais humildes. O Nacional quer esse caminho do futebol, um esporte que move muito dinheiro e pode ajudar as pessoas que necessitam – declarou Enrique Sánchez, dirigente titular do clube.
ONG "Esperança para o autismo" foi a escolhida para receber a 
doação da final da Libertadores (Foto: Divulgação)
Os preços cobrados pelo Nacional para a final variavam de R$ 10 a R$ 42. Bem menor do que os valores praticados pelo rival Olimpia na decisão do ano passado, que foram de R$ 64 a R$ 215. Se comparado com o Atlético-MG, a diferença é ainda mais gritante. O Galo cobrou de R$ 100 a R$ 500 na final da Libertadores do ano passado. Cobrar alto nunca esteve nos planos da Academia paraguaia, que contava com o estádio cheio.
- Somos de um bairro populoso que tem uma gente sem muitos meios, de classe média baixa. Obviamente, se cobrássemos preços altos, não iria ninguém. Nós queríamos o estádio repleto. É uma loucura uma final de Libertadores com ingressos a U$ 5, a U$ 15. Mas estamos na história com essa final. Depois de fazer história, o Nacional vai buscar o lucro. Seria triste chegar aqui e ver o estádio vazio – completa Enrique.
A entrega de parte da renda para a EPA deve ocorrer na próxima semana. A ideia do Nacional-PAR é continuar com a prática, especialmente quando atuar no Defensores del Chaco. O grande lucro com o apelo de uma partida decisiva ainda não veio. Mas a popularidade e o respeito dos torcedores, até mesmo dos rivais, sim.
FONTE:
Por Daniel Mundim

http://globoesporte.globo.com/futebol/libertadores/noticia/2014/08/na-contramao-nacional-adota-precos-populares-e-se-destaca-por-doacoes.html

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

LIVRO: A batalha do autismo – Da clínica à política

ABAIXO DA CRÍTICA

Resenha do livro ‘A batalha do autismo’, publicada na CH (Ciência Hoje), aponta interesses explícitos do texto, pouco conteúdo de base científica e desatualização de dados sobre o transtorno.
Por: Francisco Assumpção

Tema de livro lançado no Brasil, o chamado espectro do autismo, que reúne vários transtornos do desenvolvimento, atinge 70 milhões, segundo a Organização Mundial da Saúde.
 (foto: Belovodchenko Anton/ Freeimages)
Escrito pelo psicanalista francês Éric Laurent, este livro se propõe a oferecer um painel dos debates referentes ao autismo, bem como a desmistificar a burocracia sanitária, possibilitando perspectivas ao tratamento das pessoas autistas. Sua leitura é, a princípio, extremamente interessante, como o é a leitura de qualquer panfleto, considerado pelo dicionário Aurélio como um escrito satírico ou violento, geralmente político. Assim, já como ponto de partida, não se pode considerá-lo um livro científico. Apesar disso, podemos dividi-lo em duas partes bastante distintas.
O  livro se propõe a oferecer um painel dos debates referentes ao autismo
Uma delas, composta pelo prólogo, pelos três capítulos da parte dois, pela conclusão e pela própria introdução ao leitor brasileiro, consiste em um libelo que, no país, tem um endereço específico: a determinação da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, exigindo o diagnóstico a partir de avaliação neurológica e/ou psiquiátrica, e atendimento multiprofissional, a partir de abordagens em linguagem pragmática e em técnicas cognitivo-comportamentais, fatos tidos como inadmissíveis por toda uma gama de profissionais, embora tenham aceitação internacional.
Trata-se assim de mera discussão e defesa sobre mercado de trabalho, ainda que tente se justificar sob a égide de uma visão democrática e (como era de se esperar nesta pós-modernidade) politicamente correta.
Para tal justificativa, alguns argumentos, que devem ser pensados, são utilizados. Citando o livro Imposturas intelectuais, de Alan Sokal e Jean Bricmont (Record, 1991), podemos observar uma confusão entre o sentido corriqueiro e o técnico das palavras, bem como em ambiguidades que são frequentes em todo o texto.
Capa do livro Autismo
Um bom exemplo encontra-se logo ao se iniciar a segunda parte, quando se destaca que a medicina baseada em evidências “recusa as coortes de caso com seu acompanhamento”, esquecendo-se que estudos de coorte, muito utilizados em epidemiologia, correspondem a “se partir de um fator de exposição (causa) para se descrever a incidência e analisar associações entre causas e doenças. Fornece assim excelentes informações sobre as causas de uma doença, embora apresente alto custo e demande longo período de tempo, podendo ser confundido com estudos de caso-controle”.
O que realmente não se diz é que estudos de coorte não correspondem a meros estudos de caso, realizados de maneira descritiva e anedótica, como muitos são descritos no decorrer da obra. Da mesma maneira, inúmeras outras afirmações são feitas desconsiderando o significado técnico, o que ocasiona erros de interpretação e, principalmente, afeta a credibilidade da obra.
A segunda parte, um pouco mais séria, trata a questão do autismo sob uma ótica extremamente específica, lacaniana, que, no dizer de Catherine Meyer, em O livro negro da psicanálise (Civilização Brasileira, 2011), reflete a décalage [descompasso] entre a hegemonia da psicanálise na França e seu declínio no restante do mundo, frisando que somente Brasil e Argentina acompanham esse movimento conservador.
Teorias especulativas
Considerando essa parte teórica, as mesmas críticas me parecem procedentes, uma vez que teorias especulativas são apresentadas como ciência estabelecida – mesmo se não considerarmos as que Sokal e Bricmont apontam exaustivamente quando se referem à utilização que Jacques Lacan faz de palavras como ‘topologia’ ou ‘toro’, procurando dar uma aparência matemática (enquanto “ciência pesada”) para analogias arbitrárias.
Assim, considerando-se o tema, autismo, antes de lançarmos generalizações teóricas (e, neste caso, a partir de pouquíssimos casos relatados), seria interessante que nos debruçássemos sobre dados empíricos (bastante desvalorizados pelos intelectuais pós-modernos) para checar a procedência de determinadas afirmações.
 Em função dessas breves considerações em ambas as partes do livro, a situação deve ser analisada a partir de dados referentes à eficácia de determinados métodos, exaustivamente estudados, com revisões e experimentos recentes, e não a partir de estudos de casos individuais. Entretanto, estudos controlados e com metodologia replicável e adequada – como os apresentados por Brian A. Boyd et al. no Journal of Autism and Developmental Disorders  – são desconsiderados por esta obra, tanto sob o ponto de vista teórico (que permitiria a reformulação de teorias, fato fundamental para qualquer ciência) quanto sob o ponto de vista prático.
Mulher autista
Os métodos terapêuticos do autismo devem se basear em testes empíricos e 
na análise dos resultados obtidos em diferentes locais e ambientes. 
(foto: guenter m. kirchweger/ Freeimages)
Talvez isso esteja presente porque, sob determinadas condições (e a defesa de mercado é uma delas), o mundo real dificilmente importa (e, neste caso, os indivíduos autistas), embora o objetivo básico a ser buscado deva ser o desenvolvimento de estratégias eficientes para a verificação dos fatos, usando-se para isso bases de dados universalizadas, que permitam a escolha dos melhores e mais eficazes projetos terapêuticos. Principalmente se pensamos em saúde pública, a qual deve maximizar os benefícios para a maior parcela da população atendida, considerando-se os exíguos recursos a ela destinados.
O objetivo básico a ser buscado deve ser o desenvolvimento de estratégias eficientes para a verificação dos fatos, 
usando-se para isso bases de dados universalizadas, 
que permitam a escolha dos melhores e mais eficazes projetos terapêuticos.
Deve-se, portanto, ‘checar’ a eficácia dos métodos terapêuticos propostos não a partir de modelos teóricos, embasados na autoridade de quem fala, mas sim a partir de testes empíricos e da análise dos resultados obtidos em diferentes locais e ambientes.
A nada disso o presente livro se propõe. Resta-nos então lê-lo por aquilo que de fato é: um texto com interesses explícitos, pouco conteúdo de base científica e totalmente desatualizado em relação ao que se pensa sobre autismo, no mundo, hoje.
Para quem ainda não acredita, sugiro a leitura do número de janeiro de 2014 da Child and Adolescent Psychiatric Clinics of North America, que traz artigos recentes e documentados sobre o manuseio agudo dos ‘transtornos do espectro do autismo’. Independentemente da crença ou das falhas (indubitáveis) presentes no DSM 5 (Dicionário de Saúde Mental, da Associação Americana de Psiquiatria), utilizado pela publicação, é, ao menos, uma informação atual e razoavelmente embasada.
FONTE:
Francisco Assumpção
Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo
Publicado em 07/08/2014 | Atualizado em 07/08/2014

http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2014/316/abaixo-da-critica

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Quadros refletem carnaval de Olinda e do Recife sob visão de autista

Artista plástico Jackson Santana expõe trabalhos na Escolinha de Artes.

Obras em aquarela mostram universo do autista


Homem de Meia Noite, tradicional boneco gigante de Olinda,
é retratado por Jackson Santana
 (Foto: Divulgação)
Trabalhar o universo do autismo pela visão de quem tem a característica é a proposta da exposição individual do artista plástico Jackson Santana. Aos 39 anos, ele decidiu que queria trabalhar do seu jeito: via as irmãs saindo de casa para compromissos e viu na arte uma maneira de fazer seu próprio movimento. Acompanhado da produtora e arte-educadora Camila Sobreira, Jackson produziu 20 obras sobre a maneira como enxerga a cidade do Recife. A mostra gratuita tem abertura no sábado (9), na Escolinha de Artes do Recife, nas Graças, Zona Norte da capital.
Como conta Camila, que também é curadora da exposição, a ideia da mostra partiu das irmãs de Jackson, que gostavam de trazer à tona o lado artístico do irmão. “Ele pediu pra trabalhar, para sair de casa, estudar. Então a arte foi uma maneira dele se movimentar, foi daí que partimos nessa exposição”, relata. Depois de muitos encontros e conversas com a família desde novembro do ano passado, Jackson começou a rotina de produção das obras.
“Vimos que ele ama o Recife, o carnaval, o Galo da Madrugada. O foco dele está no desenho, não é tanto na pintura. A pintura foi algo que desenvolvemos juntos. Ele representa muito bem um lugar, uma pessoa, uma fotografia. Ele lança o olhar dele na representação, coloca no papel a representação do Marco Zero, de Olinda, do jeito que enxerga”, comenta Camila.
Apesar de desenhar desde pequeno, Jackson fez um acervo específico só para a exposição. Ele vai estar na abertura da mostra, que acontece a partir das 15h30. No local, tanto as obras quanto canecas e ímãs de geladeira com estampas feitas pelo artista serão vendidas. Todos os quadros são feitos em aquarela sobre o papel.
A educadora lembra da importância do estímulo às pessoas que têm autismo. “Através da arte a gente mexe com a autoestima da pessoa, modifica os hábitos. Antes ele não tinha uma rotina profissional, que é normal de um adulto. Agora ele tem uma, enquanto artista. Ele está aprendendo a usar o pronome possessivo, coisa que ele não fazia. Antes ele não conseguia dizer 'minhas coisas', mas agora ele fala 'minha exposição'", diz.
Jackson Santana completa 40 anos em outubro, mas desenha desde pequeno (
Foto: Divulgação)
Todos os quadros do artista plástico são feitos em aquarela sobre o papel
(Foto: Divulgação)
Serviço
Exposição individual de Jackson Santana
Do sábado (9) (com abertura às 15h30) até 9 de outubro
Escolinha de Artes do Recife - Rua do Cupim, nº 124, Graças
Entrada gratuita.

Fonte:  G1 PE

sábado, 2 de agosto de 2014

Seríamos todos autistas?

José Luiz de Araújo Júnior*  

Esta é a questão que me proponho investigar a algum tempo. É possível que não o sejamos no sentido estrito do conceito, porém certamente me parece que somos autistas sociais e políticos. Vejamos...

O Transtorno do Espectro Autista conta com diversas características idiossincráticas, dentre as quais se destaca uma quase completa incapacidade de interação social. E nós, seres humanos “normais”, dotados de incríveis faculdades verbais, gestuais e simbólicas, afastamo-nos cada vez mais do contato tête-à-tête com nossos iguais, buscando em vão preencher a solidão que naturalmente nos inunda através de contatos virtuais.
Gabamo-nos de nossa pretensa evolução tecnológica, e exibimos com orgulho a quantidade enorme de amigos que acumulamos em redes sociais, estes mesmos aglomerados de semblantes felizes que mimetizam através de selfies a montanha de emoções que somos capazes de vivenciar. Abdicamos de um cumprimento qualquer, um olá que seja — ou ao menos um aceno com a cabeça —, a um desconhecido com o qual cruzamos olhares na rua.
Em contrapartida, podemos consumir horas e mais horas em diálogos cibernéticos com “amigos” de todo o planeta. E assim nos sentimos felizes, seguros e... Solitários! A tela de um computador, de um aparelho celular ou de um tablet não nos oferece maiores riscos. Se não quisermos nos comunicar é simples: a internet caiu, o telefone ficou sem sinal ou o tablet descarregou a bateria. Já o olhar de um igual, o olhar especular, carrega-nos diretamente ao tempo de nossa infância. Reconhecemos imediatamente nosso reflexo no espelho, e ali enxergamos nossas deficiências, as quais nos fazem recordar que não somos perfeitos. É a partir desta constatação que buscamos isolamento. Tememos o olhar do outro e os julgamentos que possivelmente estarão por trás dele.
Uma outra — e não menos importante — característica que nos podemos atribuir, autistas que nos tornamos, é a estereotipia. Repetimos ações a todo momento. Isto nos dá segurança, ou seja, se já deu certo uma vez dará sempre. E se isto não mais ocorrer, fugimos novamente! E aqui me sinto à vontade para dar um salto mais distante... Observem nosso comportamento em relação à política. O que fazemos além de repetir equívocos? Erramos consecutivamente na escolha de nossos governantes, e temos ainda a audácia de culpá-los por seus previsíveis atos?! Precisamos, sim, de um processo terapêutico contínuo e coletivo, um processo no qual, tal qual é indicado aos autistas clássicos, haja estimulação por todos os lados: cultural, social e política.
Precisamos incentivar e fortalecer a educação de nossas crianças (Rubem Alves não cansou de dizê-lo), retomar com urgência a troca de olhares e palavras em nosso dia a dia, além de participar e reinventar nossa política, de baixo para cima. Precisamos de um melhor povo para cobrarmos melhores líderes. Não podemos oferecer a nossos políticos o que eles mais almejam: que sejamos autistas, que vivamos em nosso mundinho particular, avessos aos meandros sombrios do poder. Em minha experiência clínica com crianças e adolescentes autistas, percebo que prognósticos obscuros tendem a cair por terra quando buscamos enxergar além do que nos é ofertado em um primeiro momento. E é por isso que acredito firmemente que podemos reaprender a viver como nossos ancestrais viviam há milhares de anos: socialmente!

* José Luiz de Araújo Júnior é psicólogo.  
FONTE:
http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2014/08/02/seriamos-todos-autistas/
Foto: Google.