sexta-feira, 17 de abril de 2020

CORONAVÍRUS SOCIAL

       Mandei para minha amiga uma mensagem ingenuamente bem-humorada sobre a influência de um relógio, em relação ao tempo de viver e tempo de morrer. Ela me respondeu que não gosta de relógio de pulso, a figura central da mensagem, e quando quer ver as horas olha o celular, o que me levou a algumas retrospectivas pessoais.
       Lembrei parte da saga que cumpri quando acometido de um câncer dolorido e traiçoeiro, um dos mais tristes aprendizados que alguém possa suportar.
       Jamais vou esquecer daquelas pessoas vestidas com trajes surrealistas, que não via seus olhos e nem tocava suas mãos, mas era por elas que nas horas mais tristes eu era assistido e acariciado, como agora fazem os especialistas de saúde, nestes tempos de coronavírus, também traiçoeiro e sem hora para se manifestar.
       Imagino que uma pessoa contagiada pelo coronavírus, em um posto de assistência à saúde onde não sabe perguntar sobre a dor que sente, quando pergunta ninguém explica e pior, fica sujeita ao desterro quando lhe dão as costas. Sem direito a velório.
       O drama do câncer aumenta as distâncias. Nossos braços parecem encolher, quando pensamos que não vamos mais alcançar aqueles a quem amamos, embora próximos, mantendo distância que em tese isenta o contágio do coronavírus.
       Já se ouve falar que não deixam velar aqueles que sucumbem. É natural. Todavia, com câncer ou coronavírus quando tudo converge para não sermos mais nada, a vida pode ressurgir se sabemos que tem alguém nos esperando do outro lado da porta.
       Embora devedor de uma meia dúzia de moratórias para a Providência Divina e aos “Especialistas de Saúde”, o novo título do que sempre foram, encerrei a massacrante rotina de paciente de câncer, porém falta-me ouvir alguém contando as aventuras por ter deixado de ser mais uma vítima do coronavírus.
       Não quero mais passar por aquele caminho, onde as folhas de outono já cobrem o jardim na frente do hospital, pois o ciclo de chegada da estação seguinte está gestando uma nova vida e eu saindo para um novo recomeço.
       Já estava voltando para casa, quando olhei para o meu relógio. Um gesto raro, pois pensava que se não soubesse as horas, a vida demoraria mais para passar. Dispensei-o. Entendi que daquele dia em diante tinha todo o tempo do mundo pela frente.
       O mesmo aconteceu com o telefone celular. Ninguém me chamava. Desativei-o. Tinha que recomeçar a minha própria história a partir do primeiro passo na calçada além do jardim do hospital. Ao ganhar alta médica, depois de alguns anos, mesmo sem um certificado de garantia da vida, tinha perdido o medo de morrer mais cedo.
       Continuarei a amar meus afetos com mais intensidade, e ainda que não tenha desafetos, aos que me abandonaram, pensaram que eu tinha morrido ou esqueceram, estou vivo não para assustá-los como alma penada, mas para mostrar que um câncer traiçoeiro ou um coronavírus que já matou tanta gente me derrotarão facilmente.
       Radioterapias, quimioterapias e transfusões de sangue providenciais fizeram parte da minha vida. Durante a “redentora” - que a Terra lhe seja pesada - escapei do DOPS, da esquerda festiva, da sanha sindicalista, depois superei Collor, Sarney, Lula, Dilma e a Maldição dos 13 anos, Temer, et caterva.
      Escapei do câncer, porém jamais sonhei que o coronavírus me manteria preso em casa, para sair só com alvará de soltura concedido por minha mulher, tomar mil e um cuidados, usar máscara e no retorno tenho que me esterilizar. Valha-me Deus!
       Que extraordinária sensação de carinho ao chegar em casa e receber no peito o impacto das patas dos meus cachorros pelo reencontro, festejando a minha chegada, lambendo meu rosto e minhas mãos, latindo alucinados de alegria, certamente me criticando pelas longas e inexplicáveis ausências.
       O melhor do isolamento social são histórias que ressurgem. A maior constatação: a redescoberta da família. A busca de alternativas para enfrentar a saga e contribuir com os menos favorecidos e o agradecimento a Divindade Maior por acordar todos os dias, vivo e feliz, pois não será um coronavírus dissimulado que vai nos derrotar.
       Conte uma então. Enquanto é tempo, vai...

       
       NILTON SALVADOR

terça-feira, 14 de abril de 2020

PSEUDOARTISTAS


Em tempo de coronavírus, depois de alguns minutos vendo alguns beija-flores se alimentando do néctar de viçosos hibiscos florescidos, o estresse do isolamento fica menos tenso.  Lindo. Foge a rotina.
Na televisão, nem tudo o que é exibido pode ser desperdiçado, pois é um alívio saber que o coronavírus acabou com a fome, as milícias, a chikungunha, dengue, a H1N1 e outras pragas.
Denúncias generalizadas foram excluídas da pauta amestrada da “Glocontra” que sem futebol e feminicídios, enquanto o Brasil não for campeão mundial de contagiados e mortos pelo coronavírus, ela não descansa, surfando na onda do seu padrão de fantasia do quanto pior, melhor.
Poucas pessoas públicas, pela prática da arte de muito falarem asneiras e nada dizerem, sabem que Autismo é uma condição médica, caracterizada pela dificuldade na comunicação e na socialização. Embora já conte 77 anos de idade desde sua descrição, e que antes de deturpá-lo deveriam pelo menos saber que atualmente atinge cerca de 2 milhões da população do Brasil.
Ficar só na etimologia da palavra é o primeiro grande erro, como foi o caso dos humoristas que se titulam artistas”, nos fatos recentes, que demostraram imaginação para inventar e reinventar versões da mesma história, sem o mínimo conhecimento do que é um autista, deturpando-os com requintes de violência.
Autismo é diagnosticado pelo CID-10 - Código Internacional de Doenças e DSM-5 de 2013.
Pais de autistas esquecem que ganharam da ONU o Dia Mundial da Conscientização do Autismo para gritar. Quem abriu o bocão no dia 2 de abril?
O isolamento “coronavirano” faz recordar que em 2011 a MTV apresentou um quadro “Casa dos Autistas” um escárnio e propaganda do bullyng contra a pessoa autista. A MTV sob pressão dos pais retratou-se. Ofereceu direito de resposta. A asneira fez com que alguns “artistas” desaparecessem. Um deles atualmente é do elenco global.
Em dezembro de 2012 um serial killer matou a tiros 20 crianças em uma escola nos EUA, seis mulheres, e pouco antes a própria mãe em casa. Para concluir se suicidou. Seu irmão atribuiu o crime afirmando que ele era "meio autista".
A frase despertou interesses para defender as relações entre autismo e matanças em série. A frustração pela inexistência e a disseminação do preconceito frustrou quem resolveu tratar do assunto.
Em um “Domingão do Faustão” no mesmo ano, uma entrevista do apresentador com uma psicóloga, misturaram Síndrome de Asperger com psicopatia. Historicamente a reação dos pais de autistas contra o programa foi sem precedentes, revelando a mentira e o oportunismo do apresentador pelo bizarro. Enquanto a profissional de psicologia foi condenada ao desterro, sumiu.
A Globo prometeu uma novela como forma de esclarecimento do autismo, cumpriu, embora inócua.
No Brasil e no continente europeu, um falso artigo da revista científica Lancet, ligou o autismo à tríplice vacina (MMR).  A “falsificação elaborada”, foi desmascarada por Brian Deer, pai de um filho autista, tarde demais, pois somente doze anos depois é que a revista Lancet reafirmou a falsidade das conclusões.
Por não verem algumas doenças acontecerem, na última década foram observados movimentos de pais que com base em falsidades consideram as vacinas uma coisa opcional.
Sendo assim, criaram a geração do descuido, e com isso milhões de famílias deixaram de vacinar seus filhos, provocando o ressurgimento de doenças como sarampo, caxumba e rubéola, antes erradicadas.
A pessoa nasce com autismo ou é diagnosticada mais cedo ou mais tarde. “Não se morre de vacinas, morre-se de doenças".
O Congresso Nacional adotou a recomendação para que no debate político, os intervenientes não mais se acusem uns aos outros de autistas. A resolução foi adotada por unanimidade, pois a acusação não pode fazer da síndrome uma arma política para depreciação de pessoas.
Matérias jornalísticas sobre autismo raramente tem flexibilidade. Alguns autores além de nada apurar sobre a síndrome, posam como donos da razão. Não sabem o que é o abismo autista.
Tripudiar uma pessoa com autismo, além de ignorância, é um caso de covardia, pois quando esse protagonismo parte de pseudosartistas, comprova-se que falar asneira, discriminação e preconceito, a exploração da tragédia alheia é a única coisa que lhes resta.
Parece simples, mas não é, orientadas pelo uso da propaganda enganosa, pessoas corrompem e distorcem as palavras de acordo com o oportunismo que lhe convém.

Nilton Salvador





quinta-feira, 9 de abril de 2020

ATEU REZA?



Neste confinamento “coronavirano” pascoalino, que todo dia é prorrogado, sobram recordações. Uma delas, quando eu era menino rezava para ficar credor de ovos pascais, que sempre envolvia uma missão imposta pela mãe. Não me lembro se obedecia, mas acreditava, pois com dedos mindinhos entrelaçados rezava para dar certo, rindo e sobretudo sem se preocupar com a falta de recheio.
Não estou pedindo para ninguém rezar, porém com a fé que tenho e vem de longe, dói ver fiéis nas últimas semanas sem igrejas e templos fechados por um reles vírus, que nos últimos tempos faz até ateus, mesmo confinados rezarem para o seu barco não afundar. Entrelaçar mindinhos não seria apropriado. Nem sair de casa arriscando encontra-lo na calçada.
Sinto ter que retrair o sorriso, pois enquanto aqui no Brasil dois ou três se digladiam para tomar o lugar de um, a Torre de Babel europeia, robusta não encontra uma voz que decida que sua máquina de imprimir dinheiro comece a funcionar. Sem que sirva de consolo, o consenso também ainda não chegou no gigante de além mar. Alguém aí sabe onde está confinada a ONU nos últimos dias?  
Agora não adianta reclamar o que aconteceu na Espanha. A Suécia não limitou os movimentos da sua população, tanto quando seus vizinhos. Talvez para homenagear aquela menina, sem criticá-la por ter-se calado até agora quanto ao coronavírus ou sobre o cenário de horror que aconteceu na Itália.
Dia desses vi uma cena de TV em um terminal de ônibus, no momento em que a câmara mostrou inúmeras mulheres, era cedo, mal e mal tinha amanhecido o dia. Me perguntei porque aquela multidão era quase só de mulheres? Acrescento isso para dizer que o inferno do confinamento muitas delas é porque grande parte vive com agressores e tem que trabalhar.
O princípio da prudência e o dever de proteger a saúde e a vida, obrigam a que tudo se processe devagar. Se você está farto de ficar em casa, sem poder abraçar amigos, pelos efeitos do “Isolamento Social” e querendo retornar à vida normal, reze.
Nilton Salvador



quarta-feira, 8 de abril de 2020

FICÇÃO AUTISTA OU FILME REAL?



Nestes tempos de confinamento obrigatório pelo coronavírus, antecipando a iminente intimação para alguma tarefa caseira, o negócio é tirar a poeira dos livros, vídeos, CDs e acaricia-los como um pedido de perdão pelo abandono nas prateleiras.
Livros e filmes sobre autismo revivem dramas que se identificam com sua própria história. Famílias vivendo em condições indefinidas para vencer preconceitos e interrupção de carreiras, buscam provar que os desafios da condição não são barreiras para o êxito.
O exemplo familiar do pioneiro filme Meu filho, Meu Mundo de 1979, a partir do amor, aceitação, música, comida, jogos e estímulos entre outras atividades, inspiraram a abertura das vias de comunicação no mundo todo, tratamento, ensino e facilidades até então inexpugnáveis para autistas.
Poucos lembram que o filme Meu filho, Meu mundo, além de revelar a face pessoal do autismo, produziu o fenômeno sutil de induzir pessoas a acreditarem que ter autismo era uma coisa boa, todo autista é bonito e ser autista alheio à realidade encantador, o que ainda se verifica, e daí a origem da fantasia hollywoodiana, inclusive a irreal novelesca brasileira.
Rain Man, filme inspirado na história de Kim Peek, na condição de Savant, uma síndrome que intriga a Ciência ao proporcionar graves limitações e habilidades extraordinárias na pessoa, sem ser cinebiografia, deu a Dustin Hoffman o Oscar e o Globo de Ouro de melhor ator em 1988.
Em O Contador, filme de 2016, o ator Ben Affleck interpreta um autista que cuida de organizações criminosas, e secretamente leva uma vida de assassino profissional. O que se vê e encanta a plateia, é que o personagem, pela persistência de errar como autista, também pode fazer surgir à síndrome da imitação, como mais um mau exemplo de ficção que se transforma em realidade sobre o tema.
 O romantismo hollywoodiano de Rain Man não é regra. Qualquer trabalho cinematográfico envolvendo TEA carrega muita sutileza e sensibilidade, como é o caso de “Atypical”, a série de TV repleta de inexatidões ao contar a história de um autista que gosta de ser abraçado e na idade dos hormônios a flor da pele, decide namorar.
Nesta série o autismo recebeu do ator uma aprimorada demonstração, de como o personagem não se importa em parecer estranho, exceto quando busca uma namorada para ter relações sexuais, pois ignora os sentimentos das pessoas, e cada diálogo que ele tem, envolve um passo social falso.
Em Atypical de 2017, o autismo não é tão óbvio, e fere quem entende um pouco dele, quando retrata falsamente que os autistas são assustadores, e estranhos.
“The good doctor” (O bom doutor) conta a história de um jovem médico autista na condição de Savant, a mesma de Rain Man, que, se torna um profissional decifrando diagnósticos, dominando técnicas, e superando preconceitos, até conseguir um emprego.
“The good doctor” a série, fez do jovem médico autista um profissional de destaque nas tramas do hospital, mas os acertos que se assemelham não são atribuídos à sua condição, embora comovente. Puro preconceito.
 Filmes de temática distinta sobre autistas a exemplo de “Meu filho, Meu Mundo”, “Rain Man”, “O Contador, Atypical e The good doctor”, mostram o lado que dá voz a sentimento de frustração, alegria e fé deixando mensagem boa, embora reduzida.
Nosso desejo é que os atores que interpretaram com zelo o seu papel, e quem mais chegar, com seu trabalho, sirvam de exemplos para quem os vê de fora, possam contribuir para que os autistas encontrem o caminho rumo à plenitude da vida.
Nilton Salvador

domingo, 5 de abril de 2020

ISOLAMENTO SOCIAL


        Marcando o Dia Mundial da Conscientização do Autismo celebrado em 2 de abril, mais uma vez os maiores monumentos do mundo foram iluminados de azul, por ser a cor dos meninos e, mesmo considerando estes dramáticos tempos da pandemia de coronavírus.
Para marcar o evento, o CDC (Centers for Disease Control and Prevention) divulga que a prevalência do autismo aumentou em quase 10%, para 1 em cada 54 crianças nos EUA, como estimativa de apoio global, sendo validadas pela primeira vez para crianças negras e brancas, e um progresso significativo em relação ao número de crianças que recebem diagnóstico precoce.
Autistas sofrem imensamente com as mudanças provocadas pelo isolamento, daí a importância da comunicação por meio de forma didática, uma das maiores dificuldades que eles têm, enquanto requerem ações nomeando sentimentos.
Temos o que comemorar? Não! Não temos. Não somos sequer capazes de escolher representantes que de fato nos representem. Pais de autistas formam grupos coesos, mas são politicamente fracos, quase nulos, o que infelizmente os obriga pagar o alto preço do descaso com eles, que em princípio devem ser mantidos nos seus graus de dificuldade em sua maioria para continuar a serem explorados pela simpatia natural de cada um.
Ninguém precisa concordar comigo, mas convenhamos, especialistas em promessas no poder suprimem direitos não cumprindo leis específicas duramente conseguidas, com algumas que até já foram mutiladas como impeditivos de acessibilidade, que verdadeiramente não se consegue transpor caminhos como realidade dolorida.
Permita-me chamar sua atenção para o momento de Isolamento Social que estamos vivendo, para que você pense e veja se consegue descrever exatamente como está se sentindo? 
Nós pais de autistas, vivemos este isolamento permanentemente. Raramente somos convidadas para um almoço em família ou para uma festa de aniversário, porque nosso filho autista pode causar algum problema e, em tempo de coronavírus só pode ser olhado de longe.
Não existe solidariedade. Existe dó. Raramente alguém pensa qual o sentimento dessa família, da mãe que quer fazer o melhor para o filho ou filha, mas é impedida ora pelo mau uso de palavras ou quando se deparam com uma situação fortuita de surto, tensão nervosa, descompensação, discriminação e a pior das pandemias, o preconceito.
Navegar é preciso, dizia Camões. Conscientizar é preciso, dizem os pais de autistas, no sentido duplo da palavra. Depois deste Dia Mundial da Conscientização do Autismo, recém passado, eu peço para você pensar um pouquinho nisso.  
É o melhor momento, porque o coronavírus separou você de gente, familiares ou não, te escondeu dentro do teu próprio lar, mas sem poder sair, e pior, impede de abraçar o seu amigo, seu vizinho, seu amado, seu familiar, e à distância, cuide da fresta, pois ele é imprevisível.
Isso vai durar bem pouco. Vai virar fumaça, mas eu gostaria de chamar sua atenção para esse isolamento social. Se você não sabia, é bom que saiba que as famílias de pessoas com autismo passam uma vida assim, sistematicamente.
Então vamos amar, respeitar, ajudar, não apenas nesse período em que estamos todos comovidos, onde precisamos ajudar uns aos outros, mas que para isso continue acontecendo.
Não é fácil reconhecer, mas quando você ver uma mãe em qualquer lugar com uma criança em crise, não critique, não julgue, pergunte se você pode ajudar. Faça o seu melhor, pois de repente aquela criança despertando a tua intolerância é autista.
Intensifique seus efeitos, esforços, exerça sua influência, pois nunca é tarde demais para uma doação, ajudando ainda mais as famílias e pessoas com autismo que precisam de apoio, agora mais do que nunca, pois nestes momentos aparecem uma série de segmentos que se diferenciam, onde dores, a fome e as necessidades se intensificam, mas na realidade são iguais. 
Qualquer donativo, grande ou pequeno, aumentará nossa capacidade de fornecer assistência direta à comunidade de autistas, na medida em que atravessamos esses difíceis tempos de ISOLAMENTO SOCIAL, pois todos nós somos responsáveis uns pelos outros.
Nilton Salvador