1. Introdução
Ainda será sentido o profundo impacto da
Lei 13.146 de 06 de julho de 2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência -, a
partir, especialmente, da jurisprudência que se formará ao longo dos próximos
anos.
Esta Lei, como já tive a oportunidade de
observar, nos termos do parágrafo único do seu art. 1º, tem como base a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto
Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento
previsto no § 3o do art. 5o da Constituição da Republica Federativa do Brasil,
em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008,
e promulgados pelo Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de
sua vigência no plano interno.
Pela amplitude do alcance de suas
normas, o Estatuto traduziu uma verdadeira conquista social, ao inaugurar um
sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa
humana em diversos níveis.
A partir de sua entrada em vigor, a
pessoa com deficiência - aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do seu art. 2º - não deve
ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os arts.
6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não afeta a plena
capacidade civil da pessoa.
Ainda que, para atuar no cenário social,
precise se valer de institutos assistenciais e protetivos como a tomada de
decisão apoiada ou a curatela, a pessoa deve ser tratada, em perspectiva
isonômica, como legalmente capaz.
Por óbvio, uma mudança desta magnitude -
verdadeira "desconstrução ideológica" - não se opera sem efeitos
colaterais, os quais exigirão um intenso esforço de adaptação hermenêutica.
Mas, certamente, na perspectiva do
Princípio da Vedação ao Retrocesso, lembrando Canotilho, a melhor solução será
alcançada.
O que não aceito é desistir desta
empreitada, condenando o Estatuto ao cadafalso da indiferença em virtude de
futuras dificuldades interpretativas.
2. O Estatuto e a Capacidade Civil
Como salientei, com a entrada em vigor
do Estatuto, a pessoa com deficiência - aquela que tem impedimento de longo
prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, nos termos do art.
2º - não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida
em que os arts. 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não
afeta a plena capacidade civil da pessoa:
Art. 6o A deficiência não afeta a plena
capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e
reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre
o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e
planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo
vedada a esterilização compulsória;
V - exercer o direito à família e à
convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à
tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas.
Art. 84. A pessoa com deficiência tem
assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de
condições com as demais pessoas.
Esse último dispositivo é de clareza
meridiana: a pessoa com deficiência é legalmente capaz, ainda que pessoalmente
não exerça os direitos postos à sua disposição.
Poder-se-ia afirmar, então, que o
Estatuto inaugura um novo conceito de capacidade, paralelo àquele previsto no
art. 2º do Código Civil?
Em meu sentir, não há um novo conceito,
voltado às pessoas com deficiência, paralelo ao conceito geral do Código Civil.
Se assim o fosse, haveria um viés
discriminatório que a nova Lei exatamente pretende acabar.
Em verdade, o conceito de capacidade
civil foi reconstruído e ampliado.
Com efeito, dois artigos matriciais do
Código Civil foram reestruturados.
O art. 3º do Código Civil, que dispõe
sobre os absolutamente incapazes, teve todos os seus incisos revogados,
mantendo-se, como única hipótese de incapacidade absoluta, a do menor impúbere
(menor de 16 anos).
O art. 4º, por sua vez, que cuida da
incapacidade relativa, também sofreu modificação. No inciso I, permaneceu a
previsão dos menores púberes (entre 16 anos completos e 18 anos incompletos); o
inciso II, por sua vez, suprimiu a menção à deficiência mental, referindo,
apenas, “os ébrios habituais e os viciados em tóxico”; o inciso III, que
albergava “o excepcional sem desenvolvimento mental completo”, passou a tratar,
apenas, das pessoas que, "por causa transitória ou permanente, não possam
exprimir a sua vontade"; por fim, permaneceu a previsão da incapacidade do
pródigo.
Nesse contexto, faço uma breve reflexão.
Não convence inserir as pessoas sujeitas
a uma causa temporária ou permanente, impeditiva da manifestação da vontade
(como aquela que esteja em estado de coma), no rol dos relativamente incapazes.
Se não podem exprimir vontade alguma, a
incapacidade não poderia ser considerada meramente relativa.
A impressão que tenho é a de que o
legislador não soube onde situar a norma.
Melhor seria, caso não optasse por
inseri-lo no próprio artigo art. 3º (que cuida dos absolutamente incapazes),
consagrar-lhe dispositivo legal autônomo.
Considerando-se o sistema jurídico
tradicional, vigente por décadas, no Brasil, que sempre tratou a incapacidade
como um consectário quase inafastável da deficiência, pode parecer complicado,
em uma leitura superficial, a compreensão da recente alteração legislativa.
Mas uma reflexão mais detida é esclarecedora.
Em verdade, o que o Estatuto pretendeu
foi, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a
pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada" como incapaz, para ser
considerada - em uma perspectiva constitucional isonômica - dotada de plena
capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos
assistenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada e,
extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na vida civil.
3. O Estatuto e a Curatela
De acordo com este novo diploma, a
curatela, restrita a atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e
negocial, passa a ser uma medida extraordinária (art. 85):
Art. 85. A curatela afetará tão somente
os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1o A definição da curatela não alcança
o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à
educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2o A curatela constitui medida
extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua
definição, preservados os interesses do curatelado.
§
3o No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o
juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar,
afetiva ou comunitária com o curatelado. (grifei)
Note-se que a lei não diz que se trata
de uma medida "especial", mas sim, "extraordinária", o que
reforça a sua excepcionalidade.
E, se é uma medida extraordinária, é
porque existe uma outra via assistencial de que pode se valer a pessoa com
deficiência - livre do estigma da incapacidade - para que possa atuar na vida
social: a "tomada de decisão apoiada", processo pelo qual a pessoa
com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais
mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na
tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e
informações necessários para que possa exercer sua capacidade.
Pessoas com deficiência e que sejam
dotadas de grau de discernimento que permita a indicação dos seus apoiadores,
até então sujeitas a uma inafastável interdição e curatela geral, poderão se
valer de um instituto menos invasivo em sua esfera existencial.
Note-se que, com isso, a autonomia
privada projeta as suas luzes em recantos até então inacessíveis.
4. É o Fim da Interdição?
Afinal, o Estatuto pôs fim à interdição?
É preciso muito cuidado no enfrentamento
desta questão.
O Prof. Paulo Lôbo, em excelente artigo,
sustenta que, a partir da entrada em vigor do Estatuto," não há que se
falar mais de 'interdição', que, em nosso direito, sempre teve por finalidade
vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos
os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á,
apenas, de curatela específica, para determinados atos".
Esta afirmação deve ser adequadamente
compreendida.
Explico o meu ponto de vista.
Na medida em que o Estatuto é expresso
ao afirmar que a curatela é extraordinária e restrita a atos de conteúdo
patrimonial ou econômico, desaparece a figura da "interdição
completa" e do" curador todo-poderoso e com poderes indefinidos,
gerais e ilimitados".
Mas, por óbvio, o procedimento de
interdição (ou de curatela) continuará existindo, ainda que em uma nova
perspectiva, limitada aos atos de conteúdo econômico ou patrimonial, como bem
acentuou Rodrigo da Cunha Pereira.
É o fim, portanto, não do"
procedimento de interdição”, mas sim, do standard tradicional da interdição, em
virtude do fenômeno da “flexibilização da curatela”, anunciado por Célia
Barbosa Abreu.
Vale dizer, a curatela estará mais
“personalizada”, ajustada à efetiva necessidade daquele que se pretende
proteger.
Aliás, fixada a premissa de que o
procedimento de interdição subsiste, ainda que em uma nova perspectiva, algumas
considerações merecem ser feitas, tendo em vista a entrada em vigor do novo
Código de Processo Civil.
Flávio Tartuce, com propriedade,
ressalta a necessidade de se interpretar adequadamente o Estatuto da Pessoa com
Deficiência e o CPC-15, para se tentar amenizar os efeitos de um verdadeiro
"atropelamento legislativo".
E a tarefa não será fácil, na medida em
que o novo CPC já surgirá com muitos dispositivos atingidos pelo Estatuto.
Dou como exemplo o artigo do Código
Civil que trata da legitimidade para promover a interdição (art. 1.768),
revogado pelo art. 747 do CPC-15.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência,
por seu turno, ignorando a revogação do dispositivo pelo novo CPC - observou
Fredie Didier Jr. - acrescentou-lhe um novo inciso (art. 1.768, IV, CC), para
permitir que a própria pessoa instaure o procedimento de curatela.
Certamente, a conclusão a se chegar é no
sentido de que o art. 747 do CPC vigorará com este novo inciso.
Será um intenso exercício de
hermenêutica que deverá ser guiado sempre pelo bom senso.
5. O Estatuto e as Interdições em Curso
Para bem compreendermos este ponto, é
necessária uma incursão na Teoria Geral do Direito Civil.
Isso porque o Estatuto alterou normas
que dizem respeito ao “status" da pessoa natural, tema sobre o qual já
tivemos a oportunidade de escrever:
"O estado da pessoa natural indica
sua situação jurídica nos contextos político, familiar e individual.
Com propriedade, ensina ORLANDO GOMES
que ‘estado (status), em direito privado, é noção técnica destinada a caracterizar
a posição jurídica da pessoa no meio social’.
Seguindo a diretriz traçada pelo mestre
baiano, três são as espécies de estado:
a) estado político — categoria que
interessa ao Direito Constitucional, e que classifica as pessoas em nacionais e
estrangeiros. Para tanto, leva-se em conta a posição do indivíduo em face do
Estado;
b) estado familiar — categoria que
interessa ao Direito de Família, considerando as situações do cônjuge e do
parente. A pessoa poderá ser casada, solteira, viúva, divorciada ou judicialmente
separada, sob o prisma do direito matrimonial. Quanto ao parentesco,
vinculam-se umas às outras, por consanguinidade ou afinidade, nas linhas reta
ou colateral. O estado familiar leva em conta a posição do indivíduo no seio da
família. Note-se que, a despeito de a união estável também ser considerada
entidade familiar, desconhece-se o estado civil de 'concubino ou convivente',
razão pela qual não se deve inserir essa condição na presente categoria;
c) estado individual — essa categoria
baseia-se na condição física do indivíduo influente em seu poder de agir.
Considera-se, portanto, a idade, o sexo e a saúde. Partindo-se de tal estado,
fala-se em menor ou maior, capaz ou incapaz, homem ou mulher”.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência,
como dito, alterou normas reguladoras de um aspecto fundamental do “estado
individual” da pessoa natural: a sua capacidade.
E, tais normas, por incidirem na
dimensão existencial da pessoa física, têm eficácia e aplicabilidade imediatas.
Com efeito, estando em curso um
procedimento de interdição - ou mesmo findo - o interditando (ou interditado)
passa a ser considerado, a partir da entrada em vigor do Estatuto, pessoa
legalmente capaz.
Mas, como analisamos linhas acima, é
importante observar que a interdição e a curatela - enquanto
“procedimento" e “instituto assistencial”, respectivamente - não
desapareceram, havendo, em verdade, experimentado uma flexibilização.
Vale dizer, não sendo o caso de se
converter o procedimento de interdição em rito de tomada de decisão apoiada, a
interdição em curso poderá seguir o seu caminho, observados os limites impostos
pelo Estatuto, especialmente no que toca ao termo de curatela, que deverá
expressamente consignar os limites de atuação do curador, o qual auxiliará a
pessoa com deficiência apenas no que toca à prática de atos com conteúdo
negocial ou econômico.
O mesmo raciocínio é aplicado no caso
das interdições já concluídas.
Não sendo o caso de se intentar o
levantamento da interdição ou se ingressar com novo pedido de tomada de decisão
apoiada, os termos de curatela já lavrados e expedidos continuam válidos,
embora a sua eficácia esteja limitada aos termos do Estatuto, ou seja, deverão
ser interpretados em nova perspectiva, para justificar a legitimidade e
autorizar o curador apenas quanto à prática de atos patrimoniais.
Seria temerário, com sério risco à
segurança jurídica e social, considerar, a partir do Estatuto,
“automaticamente" inválidos e ineficazes os milhares - ou milhões - de
termos de curatela existentes no Brasil.
Até porque, como já salientei, mesmo
após o Estatuto, a curatela não deixa de existir.
Finalmente, merece especial referência a
previsão da denominada “curatela compartilhada”, constante no art. 1.775-A do
Código Civil, alterado pelo novo diploma estatutário: "Na nomeação de
curador para a pessoa com deficiência, o juiz poderá estabelecer curatela
compartilhada a mais de uma pessoa.”
Trata-se de uma previsão normativa muito
interessante que, em verdade, tornará oficial uma prática comum.
Por vezes, no seio de uma família, mais
de um parente, além do próprio curador, conduz a vida da pessoa com
deficiência, dispensando-lhe os necessários cuidados.
Pois bem.
O novo instituto permitirá, no interesse
do próprio curatelado, a nomeação de mais de um curador, e, caso haja
divergência entre eles, caberá ao juiz decidir, como ocorre na guarda
compartilhada.
6. Conclusão
Certamente, o impacto do novo diploma se
fará sentir em outros ramos do Direito brasileiro, inclusive no âmbito
processual.
Destaco, a título ilustrativo, o art. 8º
da Lei 9.099 de 1995, que impede o incapaz de postular em Juizado Especial. A
partir da entrada em vigor do Estatuto, certamente perderá fundamento a
vedação, quando se tratar de demanda proposta por pessoa com deficiência.
Penso que a nova Lei veio em boa hora,
ao conferir um tratamento mais digno às pessoas com deficiência.
Verdadeira reconstrução valorativa na
tradicional tessitura do sistema jurídico brasileiro da incapacidade civil.
Mas o grande desafio é a mudança de
mentalidade, na perspectiva de respeito à dimensão existencial do outro.
Ciente de que há sérios desafios de
interpretação a enfrentar, rogo que a doutrina e a jurisprudência extraiam do
Estatuto o que há nele de melhor, valorizando o seu sentido, a sua utilidade e
o seu fim.
“Juristas inteligentíssimos”, adverte
Posner," podem criar estruturas doutrinarias complexas que, embora
engenhosas e até, em certo sentido, acuradas, não têm utilidade social”.
Mais do que leis, precisamos mudar a
forma de percebermos o outro, enquanto expressões do nosso próprio eu.
Só assim compreenderemos a dignidade da
pessoa humana em toda sua plenitude.
Pablo Stolze
Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil
pela PUC-SP, tendo obtido nota dez em todos os créditos cursados, nota dez na
dissertação, com louvor, e dispensa de todos os créditos para o doutorado.
Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da Academia Brasileira de
Direito Civil. Professor da Universidade Federal da Bahia e da Rede LFG.
Publicado por Flávio Tartuce
Advogado e consultor em São Paulo.
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor dos cursos
de graduação e pós-graduação da EPD, sendo coordenador dos últimos. Professor
da Rede LFG.