terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Estatuto do Deficiente

Descrição da imagem para cego ver: 
Arte com fundo azul e os dizeres em rosa "a Lei Brasileira de Inclusão está em vigor" Ao lado um tracejado vertical e os dizeres "conheça seus direitos e cobre o que é seu!". 
Logo abaixo uma linha horizontal com ícones em rosa representando serviços públicos.

O Tempo, o Vento e o Autismo

É diferente ser mãe de uma criança autista?
Era por volta das duas da tarde quando comecei a escutar fogos retardatários. Provavelmente alguém tentava gastar sua munição de luz e som remanescente da meia noite. Minha filha mais nova dormia tranquila no cercadinho, enquanto Gabriela e eu brincávamos de cozinhar (o que é uma grande vitória, afinal significa o início do aprender a brincar). Talvez essa seja uma parte engraçada de brincar: cozinhar com brinquedos é sempre divertido, enquanto cozinhar de verdade muitas vezes é uma tarefa que muitos gostariam de riscar de sua agenda.
 A janela está aberta para arejar e, de repente, o vento bate em meu rosto, fazendo-me lembrar do tempo. Não o tempo do sol e da chuva, mas o tempo que corre no relógio, na vida. O tempo, que assim como o vento, é sentido sem ser visto, tem o poder de trazer e levar, pode se apresentar como tamanha força que machuca, enquanto em outros momentos sequer sentimos sua presença. Que magia incrível têm o tempo e o vento.
Com a chegada de um ano, o tempo passa a ser um tópico a ser pensado. A sensação é do término de uma jornada e início de outra, como se começássemos a contar as horas em um novo relógio. O passado se torna verdadeiramente passado e o que passa a contar é o presente e o futuro. As pessoas se enchem de perspectiva, promessas, vontades. Vestem-se de uma armadura de garra e juram a si mesmas mudar o que não lhes agrada. Ano Novo é antes de tudo brindar a chegada de um recomeço.
Pelo menos foi assim que durante muito tempo vi o Ano Novo. Só que desde a notícia de que minha filha tinha autismo, isso também mudou. Não que eu veja o Ano Novo com menos alegria; pelo contrário, é uma data que eu adoro. Mas, com a descoberta do autismo, sensações novas sobre o tempo surgiram.
Eu traçava metas para o ano seguinte, sabendo que as rédeas da vida estavam em minhas mãos. Emagrecer? Era só eu comer menos e fazer mais exercícios. Trabalhar mais? Era só colocar o relógio para acordar mais cedo. Arranjar um namorado? Não que isso dependesse só de mim, mas certo é que ninguém segura uma mulher obstinada a ter um relacionamento. Então, de certa forma, tudo que eu quisesse ter na minha vida ou tirar dela baseava-se nas escolhas que eu fizesse. A sensação de traçar metas para um novo ano era, portanto, um sentimento de controle sobre o meu tempo.
Com o diagnóstico de autismo de minha pequena, a coisa mais importante de minha vida passou a ser lutar para que Gabriela vivenciasse todo seu potencial, que conseguisse tratar os sintomas do autismo. Ocorre que isso não é algo que dependa de mim e não é uma meta que eu possa traçar para o novo ano que chega. Seria um tanto quanto sem sentido comer sete uvas, pular sete ondas, e depois proclamar “esse ano vamos derrotar os sintomas de autismo de minha filha”.  Embora lutar para dar os tratamentos apropriados seja necessário todos os dias, não há meta sobre o autismo de minha filha que possa ser feita em 2016.
Aceitar o autismo não se confunde em não guerrear contra seus sintomas, buscando sempre uma evolução da qualidade de desenvolvimento global do indivíduo.  Ocorre que tal luta deve ser doce, respeitando o tempo e as peculiaridades da criança. Não pode ser medida em dia, meses ou anos. Dessa forma, no que se trata do tratamento de minha pequena, 1º de janeiro de 2016 é apenas o dia depois de 31 de dezembro de 2015. A presença constante do autismo em nossas vidas parece, por vezes, dar a impressão de continuidade, como se um dia sequenciasse o outro sem fins ou recomeços.
Se pararmos para pensar é bem isso que a vida é: um dia após o outro, independente de que ano estamos. O calendário é apenas uma criação humana e, portanto, o recomeço de uma vida nova por causa de um ano novo apenas existe em nossos corações. A realidade é apenas que nós estamos seguindo, vivendo e dando sequência. A noção de recomeço por um novo ano parece ser uma válvula de escape, que parece ser apagada a partir do momento que lidamos com o diagnóstico de autismo.
Talvez quem olhe de fora essa perspectiva ache difícil a vida de pais e mães de autistas e sua incapacidade de verdadeiramente se importar com a elaboração de metas para um ano que chega. Ocorre que na verdade é justamente na alteração de perspectiva de tempo que mora o segredo: lutar pela saúde e desenvolvimento do filho exige o aprender a renascer não com o finalizar de um ano, mas sim diariamente – e não há uma felicidade peculiar em perceber que todo dia é uma página em branco.
E renascer todos os dias é, em seu conceito, nascer de novo, e por consequência ser criança de novo. Assim, renascer todos os dias por um filho autista é enfrentar com ele os desafios da vida; é essencialmente aprender a florescer novamente a pureza, a energia, a persistência, a luz de quando ainda éramos muito jovens para admirar e acreditar em fadas e anjos azuis.  

É como já dizia Érico Veríssimo (escritor de O Tempo e o Vento): “A vida começa todos os dias”
Feliz 2016! Feliz dia! Feliz vida!
FONTE:
Hanna Baptista
Diário de um Autista
http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/diario-de-autista/o-tempo-o-vento-e-o-autismo/

CRISES, PERDAS E SAÍDAS

Estamos em uma época de crise social, política e econômica, de discussões intermináveis e de uma espécie de cisão que começou a aparecer com a campanha eleitoral do ano passado.
Sim: crises de fato azem parte de qualquer país, em qualquer região do mundo ou em qualquer tempo. Mas o triste é ver como alguns dos nossos cidadãos enxergam “a saída”: uma espécie de divisão do Brasil em regiões, pautando-se pela divisão entre pobres versus ricos, nordeste versus sudeste (como se não houvesse outra região no país), sul versus “o resto”.
Essa guerra civil tácita, esse sentimento de embate de acordo com as inclinações políticas ou posições sociais, dificilmente nos fará algum bem enquanto povo. Estava pensando nisso dia desses quando me deparei, em uma busca aleatória, com a literatura de Cordel.
Tudo bem que a herdamos dos portugueses, mas foi com base nesse estilo tão singular que o Nordeste conseguiu contar as suas próprias histórias e se consolidar como povo. Cordel é pura arte nascida do improvável.
É beleza bucólica, meio triste, meio esperançosa, completamente incrível.
E completamente Brasil – assim como o realismo, o concretismo e outras tantas linhas que nasceram pelos quatro cantos do país.
E por que essa mistura de assuntos?
Ora… porque, se conseguimos construir tantas coisas maravilhosas juntos, como é possível que alguém realmente acredite que o segredo do sucesso está em separar os estados e regiões em outros países?
Qual bem faria ao Sudeste perder o Cordel como expressão nacional? E para o Nordeste? O que ganharia essa região ao perder Machado de Assis? O sul ficaria realmente melhor sem Graciliano Ramos? E o centro-oeste sem Mário Quintana?
Todos esses nomes vão além de seus estados – eles são brasileiros inteiros, forjados a partir das referências nacionais de todas as partes. Seria triste perdermos isso.

Editorial Clube de Autores