Esta sentença foi proferida pelo Culto Magistrado
de São Paulo, Doutor Tom Alexandre
Brandão, e publicada recentemente, em 3 de fevereiro de 2014. Cuida de um
caso interessante que diz respeito aos limites do humor e envolve o conhecido
humorista “RAFINHA BASTOS”.
Acompanhamos nos últimos anos o surgimento de novas
e criativas formas de fazer humor. As vezes o humorista é ferino e agressivo ao
usar fatos e acontecimentos extraídos da nossa realidade social para brincar.
Em outras situações o humorista é grosseiro com personalidades públicas. Por
conta dessa nova forma de fazer humor, que parece tem um bom público, nos
perguntamos se deve haver algum limite para esta forma de expressão. Esta
sentença trata justamente desse tema ao julgar uma ação civil publica ajuizada
contra o humorista. Recomendo a leitura da excelente argumentação lançada pelo
Douto Magistrado e que o leitor faça as suas reflexões. Podemos impor limites
ao humor ?
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Vistos.
Trata-se de ação civil pública proposta pela ASSOCIAÇÃO DE PAIS E AMIGOS DOS
EXCEPCIONAIS – APAE SÃO PAULO em face de RAFAEL BASTOS HOCSMAN.
Narra a petição inicial que o réu é o protagonista
de um show de stand-up comedy intitulado “A Arte do Insulto”, comercializado em
mídia “DVD” por todo o território nacional.
Afirma que o réu, humorista conhecido como “Rafinha
Bastos”, “ganhou notoriedade nacional por enfrentar delicadas questões de
natureza social, religiosa e étnica de maneira não raras vezes mais do que
polêmica, insultosa, daí advindo naturalmente o título por ele próprio
emprestado a seu show e respectivo DVD” (página 3).
Insurge-se a associação autora contra uma
brincadeira que consta do aludido show, mais precisamente quando o humorista
diz a seguinte passagem:
“um tempo atrás eu usei um preservativo com efeito
retardante … efeito retardante … retardou … retardou … retardou … tive que
internar meu pinto na APAE … tá completamente retardado hoje em dia … eu tiro
ele prá fora e ele (grunhidos ininteligíveis)”
Questiona, ainda, outra intervenção do humorista
que, no seu sentir, “derrapa no tom da elegância e esbarra na esfera de
direitos tutelados pela Constituição Federal”, quando o réu defende seu
posicionamento contrário à fila preferencial instituída por lei a idosos,
pessoas com deficiência e outros:
“as pessoas na cadeira de rodas … ah, fila
preferencial! Haha advinha amigo, você é o único que tá sentado. Espera quieto!
Cala essa boca!”
A associação autora entende que saiu de cena a
arte, restando apenas puro insulto à honra e imagem de pessoas com deficiência
mental.
Deste modo, sustenta que o réu atingiu de modo
violento a dignidade de todos aqueles que suportam a já dura e triste realidade
de quem é acometido por deficiência de qualquer natureza. Recorre à
Constituição Federal e à Declaração Universal dos Direitos Humanos para
defender que todos têm direito à proteção contra qualquer discriminação.
Pede, ao final, uma tutela de natureza cominatória,
mais precisamente para que o réu se abstenha de vender, dispor à venda ou fazer
circular por qualquer meio ou forma o DVD com o show “A Arte do Insulto” ou,
alternativamente, que retire menção feita à APAE e a pessoas com deficiência
mental.
Requer que a ordem seja estendida para shows e
apresentações do humorista, de maneira que não possam contemplar a associação
autora ou pessoas com deficiência mental.
Pretende, ainda, a condenação do réu ao pagamento
de (i) indenização pelos prejuízos causados à imagem da associação, (ii) ao
valor de R$ 10.000,00 a cada associado que venha a se habilitar nos autos e,
por fim, (iii) em quantia a ser destinada ao Fundo de Direitos Difusos (FDD).
A petição inicial, emendada, foi instruída com
documentos.
Houve o deferimento da liminar pretendida (páginas
73/81). A decisão foi confirmada pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo
no julgamento do agravo de instrumento interposto pelo autor.
Citado, o réu ofereceu contestação, acompanhada de
documentação. Em preliminar, defende a ilegitimidade ativa da autora, bem assim
a inadequação da via escolhida para a defesa de direito individual da
associação.
No mérito, argumenta que o humor desfruta de
proteção constitucional e que não pode se sujeitar à censura ou repressão.
Explica que as piadas não refletem a opinião pessoal do humorista e que têm
como único objetivo divertir (animus jocandi).
Nega os danos reclamados.
A associação autora manifestou-se em réplica.
Parecer do Ministério Público opinando pela
procedência parcial dos pedidos iniciais (páginas 341/359).
Realizada audiência de conciliação, infrutífera.
É o
relatório. Decido.
Possível o julgamento antecipado, nos termos do
artigo 330, I, do Código de Processo Civil. Desnecessária a instrução, sendo
certo que os fatos que interessam ao deslinde do feito estão documentados nos
autos.
Afasto a preliminar de ilegitimidade ativa, pois a
autora tem entre as suas finalidades a defesa dos interesses das pessoas
portadoras de deficiência mental que, em tese, poderiam sentir-se atingidas
pelas piadas descritas na petição inicial.
Assiste razão ao réu, todavia, quanto à preliminar
de inadequação da via eleita em relação a um dos pedidos. A ação civil pública
não poderia deduzir pretensão de natureza individual e particular da associação
autora, mais precisamente quando persegue proteção à própria imagem.
Prejudicado, assim, o pedido indenizatório no valor
de R$ 100.000,00 pelos prejuízos alegadamente causados à imagem da associação
autora (página 19, item C, ‘iii’).
No mais, não há outras preliminares ou nulidades
aparentes.
Passo ao
mérito.
Pese a orientação já sinalizada pelo Tribunal de
Justiça de São Paulo no julgamento do agravo de instrumento interposto pelo
réu, ressalvo, com a devida vênia, o entendimento absolutamente distinto deste
magistrado acerca da questão colocada em litígio.
O humor é uma importante forma de manifestação
artística e cultural, instrumento relevante de compreensão dos grupos sociais
ao longo da História. É, sobretudo, fruto de expressão do espírito e da
inteligência.
Tormentoso estabelecer critérios científicos para
definir e identificar o humor.
O assunto remete à discussão acerca da pornografia
travada na Suprema Corte dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970. São
emblemáticos os julgamentos daquele Tribunal que abordam os contornos do que
poderia ser considerado como obscenidade e, portanto, passível de banimento.
Buscava-se a interpretação da primeira emenda à
Constituição dos Estados Unidos, que impede edição de lei pelo Congresso que
limite a liberdade de expressão .
Mais do que a análise do cotejo entre o direito
individual à liberdade de expressão e autonomia privada para o consumo desse
material e os interesses públicos supostamente violados pela propagação da
pornografia, a questão ganhou relevo pela própria dificuldade em se definir o
que poderia ser considerado como um material obsceno ou pornográfico.
O juiz Potter Stewart da Suprema Corte, ao abordar
o problema, proferiu uma frase que se tornou célebre na jurisprudência
norte-americana: “eu não consigo definir a obscenidade e talvez eu nunca consiga.
Mas eu sei o que é quando a vejo” (tradução livre).
Evidente que, àquela época, os tempos eram bem
diferentes. Questionava-se, inclusive, a possibilidade de publicação e
distribuição de obras literárias com conteúdo considerado obsceno, o que hoje
seria inimaginável.
Todavia, a dificuldade de se definir o que era
pornografia guarda interesse.
O problema se repete no caso do humor. Como
delimitar o que é humor para, apenas então, discutir se o Estado pode ou não
interferir na liberdade de expressão. A exemplo da feliz observação do juiz
norte-americano, qualquer pessoa tem capacidade de discernir, com um pouco de
boa vontade e um mínimo de inteligência, o que é uma manifestação humorística,
distinguindo-a de uma simples opinião.
Essa introdução parece-me relevante, pois a vedação
ou limitação ao humor esbarra em valores constitucionalmente garantidos e
direitos fundamentais, tais como a liberdade de manifestação do pensamento
(artigo 5º, IV, da Constituição Federal), da expressão da atividade artística
(inciso IX) independentemente de censura ou licença, bem como o livre exercício
da profissão (nas hipótese de comediante profissional).
O humor tem como uma das suas finalidades a
diversão e, não raro, é marcado pela descontração; vale-se do exagero, da
hipérbole e do absurdo para provocar o riso; é uma constatação banal, mas que
deve ser tomada como premissa no caso dos autos, pois é absolutamente
inadequado interpretar uma piada no seu sentido literal, tal como pretendido
pela associação autora.
São interessantes as observações do professor
Cláudio Luiz Bueno de Godoy[1]:
“(…) É verdade que, especialmente nesses casos (o
autor se refere a programas humorísticos e caricaturas), os direitos da
personalidade devem ser encarados sem se desconhecer que o exagero é ínsito
àquelas manifestações de humor. Daí que, em si, o exagero não pode ser causa de
dano à personalidade como o é em outros campos. Em diversos termos, apenas em
condições extremas e explícitas será possível enxergar ofensa à honra ou à
imagem, especialmente, derivada de manifestação exagerada, mas com finalidade
humorística. Isso porque, afinal, como é evidente, o humor também não serve a
mascarar ou a justificar conduta que seja deliberadamente ofensiva a outrem.
Por certo que a roupagem humorística não constitui um salvo-conduto contra a
infringência proposital a direitos da personalidade…”.
Nesse ponto, oportuna a distinção trazida por
Manuel da Costa Andrade[2] acerca da roupagem e da mensagem ínsitas às
manifestações humorísticas.
O humor, em regra, carrega uma roupagem própria e
característica de sua forma de expressão, que, como visto, é marcada pelo
exagero, muitas vezes pelo grotesco. E esse modo de linguagem, por óbvio, não
pode gerar qualquer violação a direitos da personalidade. Em suas palavras:
“(…) à roupagem cabe, assim, uma função
prevalentemente apelativa: emprestar visibilidade e força à mensagem a
transmitir. Acresce que é sobretudo na roupagem que se actualiza a liberdade de
criação artística da sátira e da carictura. O que confirma a expectativa já
antecipada e segundo a qual a roupagem não colidirá normalmente com a dignidade
pessoal. A acontecer, a colisão há-de, em princípio, levar-se à conta de custo
social a suportar em nome da liberdade de criação artística. Em regra, ela
aparecerá como socialmente adequada, não se revestindo daquela soziale
auffälligkeit que na já citada formulação de Kakobs constitui a marca da
tipicidade. E isto, importa sublinha-lo, postas entre parênteses as questões do
bom gosto ou da velência estética da manifestação concreta da sátira ou
caricatura.”
Vivemos num mundo aparentemente contraditório: de
um lado, expandem-se formas novas formas de humor escrachado, como se percebe
em programas televisivos, sites na internet ou em espetáculos de show do tipo
stand up comedy”, como retratado nos autos.
Em contrapartida, é cada vez mais perceptível uma
exacerbação da sensibilidade da opinião pública, avessa ao humor “chulo” (ou talvez à explicitação dessa forma
de humor) ou mesmo a qualquer tipo de exploração das diferenças.
É um reflexo do “politicamente correto”. Elias
Thomé Saliba, professor titular de História da Universidade de São Paulo e
profundo estudiosos do humor, aborda com propriedade esse fenômeno:
“(o politicamente correto) é uma criação ideológica
característica de sociedades que perderam o norte dos padrões morais e acabaram
por impor regras casuísticas tópicas, que só conseguem estabelecer limites
arbitrários. Batizado com outros nomes ou disfarçado de alguma forma de
censura, o ‘politicamente correto’ sempre existiu em sociedades que viveram
momentos distópicos, quando a ausência de cenários futuros deixou de ensejar
padrões morais estáveis. O resultado é um moralismo nervoso que se manifesta
aqui e ali, meio esquizofrênico, tópico, que não sabe bem a que veio e, na
história, nunca resultou em boa coisa.”
Manifestações humorísticas que eram bastante comuns
e apreciadas no passado já não mais são aceitas pela sociedade contemporânea
(ou por parte dela). Vale mencionar, como ilustração, um famoso programa
humorístico dos anos 70 e 80 chamado “Os Trapalhões”, da Rede Globo de
Televisão. Um dos participantes (Antônio Carlos Bernardes Gomes, cuja alcunha
era “Mussum”), negro, era frequentemente associado à figura de um cachaceiro e
de um macaco. À época, tais insinuações eram consideradas inocentes e
perfeitamente assimiláveis pela audiência.
Essas mesmas piadas, acaso repetidas nos dias
atuais, certamente gerariam enorme grita, quiçá com repercussão criminal.
A questão, inicialmente simples, convida à
reflexão. Em realidade, é interessante perquirir o próprio conceito de ato
ilícito e, no limite, a eficácia da intervenção do Direito como sistema de
controle e organização social.
Considero que, no aspecto jurídico, a expressão
humorística deve ser respeitada num grau extremamente elástico,
independentemente do tipo, da qualidade e, inclusive, do assunto tratado. Mesmo
os temas que consistem em tabus sociais podem ser objeto de humor. Exemplos
ajudam a construir o raciocínio.
Em data recente houve uma polêmica acerca da
instalação de uma estação de metrô em Higienópolis, tradicional bairro da
cidade de São Paulo, que reúne grande concentração da comunidade judaica.
Em síntese, alguns moradores do bairro, tido como
elitizado, supostamente questionaram a necessidade da linha metroviária no
local, frequentado por “gente diferenciada” que não necessitaria daquele meio
público de transporte. Não desejavam, em realidade, a popularização do bairro.
Diante da celeuma causada pela posição
aparentemente segregadora, um humorista conhecido como “Danilo Gentili”
utilizou-se das redes sociais para divulgar a seguinte piada: “entendo os
velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de
um vagão foram parar em Auschwitz“, em clara referência ao campo de
concentração nazista utilizado no período da Segunda Guerra para exterminar
judeus.
Como é cada vez mais comum no cenário
contemporâneo, em que as comunicações são verdadeiramente instantâneas, o texto
gerou inúmeras críticas dos mais variados segmentos da sociedade, sendo certo
que o episódio assumiu grandes proporções.
O humorista, de imediato, formulou pedido de
desculpas na mesma rede social, pela qual afirmou que sua intenção, como
comediante, nunca foi trazer nenhum outro sentimento ao público que não fosse
alegria.
Pode-se questionar se o referido humorista foi
feliz, ou não, em fazer uma brincadeira com uma matéria tão sensível. Pode-se
mesmo afirmar que demonstrou grande falta de tato, até mesmo por formular essa
piada numa rede social, cujo alcance é inimaginável.
Mas, a meu sentir, parece-me evidente que o
humorista não cometeu qualquer ato ilícito ao simplesmente fazer uma piada que
envolveu o judaísmo. Afirmar que ele corroborou a prática nazista seria uma
conclusão absolutamente ridícula, hipócrita e desconectada com a realidade.
Na última virada de ano, o piloto alemão Michael
Schumacher sofreu um gravíssimo acidente ao praticar esqui e permanece internado
em estado de coma devido ao traumatismo craniano. Nesse mesmo período, o
lutador Anderson Silva machucou-se seriamente em uma luta em que disputava o
título mundial, na qual fraturou diversos ossos de sua perna.
Malgrado a repercussão mundial desses tristes
acontecimentos, não tardaram surgir piadas envolvendo esses episódios nas redes
sociais, tais como: “o Anderson Silva encontrou Michael Schumacher no hospital
e tiveram uma conversa sem pé nem cabeça”.
A brincadeira foi infeliz? Talvez sim. Inoportuna,
diante do sofrimento de fãs e familiares? Provavelmente. Engraçada ou
espirituosa? Não interessa. Mas, há de se convir, quem conta essa piada não
comete um ato ilícito e, tampouco, deseja o mal aos atletas. Apenas aproveita a
ligação desses acontecimentos para fazer uma conexão humorística.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao caso dos
autos.
Não é admissível sequer cogitar que o réu nutra
algum tipo de desprezo em relação aos portadores de deficiência física ou
mental, assim como não é possível afirmar que as pessoas em geral tenham
efetivamente problemas em relação às loiras, aos portugueses, aos gagos…
Qualquer piada, desde a mais singela possível, pode
dar azo a uma interpretação cruel. Ora, quem brinca dizendo que “mulher no
volante, perigo constante” (minha avó fazia essa brincadeira!) pode ser tachado
de machista, sexista, insensível à igualdade dos sexos, às conquistas das
mulheres nas últimas décadas etc.
Tudo isso para dizer que uma piada é, afinal,
apenas uma piada. Simples manifestação cultural, um costume social, um atributo
da inteligência humana. Não há, em regra, uma ofensa a quem quer que seja. A
pior consequência de uma piada infeliz, que cruza os limites toleráveis da
audiência, é o desprezo, o silêncio.
Há, por certo, pertinência em analisar os limites
do humor. Mas isso apenas em outra perspectiva, fora do espectro do Direito,
notadamente da responsabilidade civil. A ideia do politicamente correto ou
mesmo os valores implícitos que motivam a existência ou receptividade de
determinado tipo de humor devem ser (como de fato são) estudadas pelas ciências
sociais e pela psicologia.
Pode-se sofisticar o raciocínio e cogitar que o
humor tem uma função de violência simbólica (emprestando, de modo impróprio, um
conceito de Pierre Bourdieu), perpetuando diferenças e preconceitos sob o manto
disfarçado do cômico. São todas discussões plenamente válidas.
Mas, repito, afirmar que uma piada é um ato ilícito
não me convence.
Atribuir ao Poder Judiciário a função de julgar uma
piada é um verdadeiro nonsense: interpretar, com critérios tradicionais
hermenêuticos do nosso ordenamento, uma manifestação humorística, equivale a
propor uma ação de divórcio de Bentinho e Capitu, a instaurar um inquérito
policial para investigar a morte de Odete Roitman ou, ainda, determinar a
prisão dos atores que atuaram como mafiosos no filme “O Poderoso Chefão” por
formação de quadrilha.
Essa é a linha que, portanto, impede a análise das
piadas noticiadas na inicial. Penso que a intervenção do sistema jurídico nesse
tema é inócuo.
Não se quer dizer que o humor poderá servir como
excludente de responsabilidade em toda e qualquer manifestação. Evidente que é
possível admitir, em determinadas situações, a colisão entre princípios
fundamentais da liberdade de expressão e a proteção dos direitos da
personalidade.
Mais exemplos para facilitar a fundamentação: um
caso que ganhou destaque envolveu a atriz “Carolina Dieckmann” e o programa
humorístico “Pânico na TV”, então exibido pela emissora “RedeTv”. Havia um
quadro denominado “As Sandálias da Humildade”, no qual os integrantes da
atração procuravam celebridades com perfil que associavam à “arrogância”,
propondo (ou exigindo) a elas que calçassem as chamadas as “Sandálias da
Humildade”, numa demonstração de sua “humildade”.
Vários artistas participaram da atração,
contrariados ou não.
Ocorre que, no caso de Carolina Dieckmann, houve
expressa recusa da artista em contribuir para o quadro.
Nas oportunidades em que era interpelada pelos
comediantes, a atriz simplesmente os ignorava, demonstrando claramente que não
gostaria de fazer parte da atração. Essa reação, em realidade, agradou aos
humoristas, que passaram a realizar uma verdadeira perseguição à atriz. Tudo
devidamente registrado pelas câmeras de televisão, sendo certo que os
“capítulos da novela” eram semanalmente explorados no programa, catapultando os
índices de audiência.
A situação chegou a tal extremo que a produção do
programa contratou os serviços de um caminhão com um guindaste, instalando-o
defronte à residência da atriz, com os humoristas fazendo de tudo para chamar
sua atenção (com um megafone) em seu próprio apartamento. Carolina Dieckmann
recorreu ao Poder Judiciário do Rio de Janeiro, obtendo sentença condenatória
de indenização por danos morais e, ainda, tutela inibitória proibindo o
programa de exibir sua imagem ou fazer qualquer referência ao seu nome .
Nesse caso, é cristalino que houve uma verdadeira
perseguição à artista, comprometendo a sua vida diária e violando o seu direito
de ir e vir, sua privacidade. Seria um despautério permitir que essa postura
incisiva prevalecesse protegida pela roupagem de humor.
Da mesma forma, o humor pode ser intolerável quando
destinado especificamente a alguém, constrangendo-o perante o grupo de
trabalho, familiar ou social. Com efeito, há casos na jurisprudência que
caracterizam assédio moral no ambiente de trabalho ou bullying escolar. Ainda
que, no limite, tais gozações pudessem ser enquadradas como piadas, têm uma
repercussão direta na esfera de personalidade da vítima, legitimando e impondo
a atuação do sistema judicial.
Há, em tais hipóteses, um destinatário específico,
uma vítima a ser protegida. A liberdade de expressão é exercida de modo abusivo
e, como tal, deixa de configurar excludente de responsabilidade.
Não é, no meu entendimento, o caso dos autos, sendo
certo que inexiste a prática de ato ilícito pelo réu, protegido que está pela
regra do artigo 187 do Código Civil. Age em exercício regular de direito
(liberdade de expressão e manifestação artística).
A ótica que me parece mais adequada é prestigiar a
liberdade de expressão e da atividade artística, sem qualquer juízo de valor a
respeito do conteúdo e, sobretudo, da qualidade do humor praticado.
Nesse ponto, não se pode deixar de observar o
caráter elitista da observação constante da inicial no sentido de que o réu
“derrapa no tom da elegância”. O humor, a todo sentir, não tem que ser
necessariamente elegante ou inteligente. Aliás, seria presunçoso dizer que
apenas o humor inteligente pode ser realizado.
Em decisão do Superior Tribunal de Justiça (Resp
736.015), a Ministra Nancy Andrighi assentou que “a questão paralela posta
pelas recorrentes, a respeito do ‘nível’ do humor praticado pelo periódico –
apontado como ‘chulo’ – não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que
não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos
humoristas envolvidos; a prestação jurisdicional deve se limitar a dizer se
houve ou não ofensa a direitos morais das pessoas envolvidas pela publicação.“
Prossegue afirmando que não cabe ao Judiciário
“dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’. Tal classificação é, de per si,
odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma,
mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos
culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente,
pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação
intelectual ‘superior’ – e, só por isso, já dariam ensejo à compensação moral quando
envolvessem uma dessas pessoas, categoria na qual as recorrentes expressamente
se incluem logo na petição inicial do presente processo. A tarefa de examinar
aquilo que se poderia chamar de ‘inteligência’ do humor praticado cabe, apenas,
aos setores especializados da imprensa, que concedem prêmios aos artistas de
acordo com o desempenho por eles demonstrado em suas obras“.
Em conclusão: o juiz não pode dizer se a piada é
boa ou ruim, se o humor tem qualidade ou não tem.
Ante o exposto, julgo improcedentes os pedidos
iniciais. Revogo a liminar anteriormente concedida.
Custas e despesas pela associação autora. Não há
condenação em honorários.
São Paulo, 29 de janeiro de 2014
Publicado
por Carlos Garbi em:
Civil,
Constitucional, FAMÍLIA, Variedades
Foto: Justiça pela Metade - newsrondonia - Google.