quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Há Limites para o Humor ?



Esta sentença foi proferida pelo Culto Magistrado de São Paulo, Doutor Tom Alexandre Brandão, e publicada recentemente, em 3 de fevereiro de 2014. Cuida de um caso interessante que diz respeito aos limites do humor e envolve o conhecido humorista “RAFINHA BASTOS”.
Acompanhamos nos últimos anos o surgimento de novas e criativas formas de fazer humor. As vezes o humorista é ferino e agressivo ao usar fatos e acontecimentos extraídos da nossa realidade social para brincar. Em outras situações o humorista é grosseiro com personalidades públicas. Por conta dessa nova forma de fazer humor, que parece tem um bom público, nos perguntamos se deve haver algum limite para esta forma de expressão. Esta sentença trata justamente desse tema ao julgar uma ação civil publica ajuizada contra o humorista. Recomendo a leitura da excelente argumentação lançada pelo Douto Magistrado e que o leitor faça as suas reflexões. Podemos impor limites ao humor ?
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Vistos.
Trata-se de ação civil pública proposta pela ASSOCIAÇÃO DE PAIS E AMIGOS DOS EXCEPCIONAIS – APAE SÃO PAULO em face de RAFAEL BASTOS HOCSMAN.
Narra a petição inicial que o réu é o protagonista de um show de stand-up comedy intitulado “A Arte do Insulto”, comercializado em mídia “DVD” por todo o território nacional.
Afirma que o réu, humorista conhecido como “Rafinha Bastos”, “ganhou notoriedade nacional por enfrentar delicadas questões de natureza social, religiosa e étnica de maneira não raras vezes mais do que polêmica, insultosa, daí advindo naturalmente o título por ele próprio emprestado a seu show e respectivo DVD” (página 3).
Insurge-se a associação autora contra uma brincadeira que consta do aludido show, mais precisamente quando o humorista diz a seguinte passagem:
“um tempo atrás eu usei um preservativo com efeito retardante … efeito retardante … retardou … retardou … retardou … tive que internar meu pinto na APAE … tá completamente retardado hoje em dia … eu tiro ele prá fora e ele (grunhidos ininteligíveis)”
Questiona, ainda, outra intervenção do humorista que, no seu sentir, “derrapa no tom da elegância e esbarra na esfera de direitos tutelados pela Constituição Federal”, quando o réu defende seu posicionamento contrário à fila preferencial instituída por lei a idosos, pessoas com deficiência e outros:
“as pessoas na cadeira de rodas … ah, fila preferencial! Haha advinha amigo, você é o único que tá sentado. Espera quieto! Cala essa boca!”
A associação autora entende que saiu de cena a arte, restando apenas puro insulto à honra e imagem de pessoas com deficiência mental.
Deste modo, sustenta que o réu atingiu de modo violento a dignidade de todos aqueles que suportam a já dura e triste realidade de quem é acometido por deficiência de qualquer natureza. Recorre à Constituição Federal e à Declaração Universal dos Direitos Humanos para defender que todos têm direito à proteção contra qualquer discriminação.
Pede, ao final, uma tutela de natureza cominatória, mais precisamente para que o réu se abstenha de vender, dispor à venda ou fazer circular por qualquer meio ou forma o DVD com o show “A Arte do Insulto” ou, alternativamente, que retire menção feita à APAE e a pessoas com deficiência mental.
Requer que a ordem seja estendida para shows e apresentações do humorista, de maneira que não possam contemplar a associação autora ou pessoas com deficiência mental.
Pretende, ainda, a condenação do réu ao pagamento de (i) indenização pelos prejuízos causados à imagem da associação, (ii) ao valor de R$ 10.000,00 a cada associado que venha a se habilitar nos autos e, por fim, (iii) em quantia a ser destinada ao Fundo de Direitos Difusos (FDD).
A petição inicial, emendada, foi instruída com documentos.
Houve o deferimento da liminar pretendida (páginas 73/81). A decisão foi confirmada pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento do agravo de instrumento interposto pelo autor.
Citado, o réu ofereceu contestação, acompanhada de documentação. Em preliminar, defende a ilegitimidade ativa da autora, bem assim a inadequação da via escolhida para a defesa de direito individual da associação.
No mérito, argumenta que o humor desfruta de proteção constitucional e que não pode se sujeitar à censura ou repressão. Explica que as piadas não refletem a opinião pessoal do humorista e que têm como único objetivo divertir (animus jocandi).
Nega os danos reclamados.
A associação autora manifestou-se em réplica.
Parecer do Ministério Público opinando pela procedência parcial dos pedidos iniciais (páginas 341/359).
Realizada audiência de conciliação, infrutífera.
É o relatório. Decido.
Possível o julgamento antecipado, nos termos do artigo 330, I, do Código de Processo Civil. Desnecessária a instrução, sendo certo que os fatos que interessam ao deslinde do feito estão documentados nos autos.
Afasto a preliminar de ilegitimidade ativa, pois a autora tem entre as suas finalidades a defesa dos interesses das pessoas portadoras de deficiência mental que, em tese, poderiam sentir-se atingidas pelas piadas descritas na petição inicial.
Assiste razão ao réu, todavia, quanto à preliminar de inadequação da via eleita em relação a um dos pedidos. A ação civil pública não poderia deduzir pretensão de natureza individual e particular da associação autora, mais precisamente quando persegue proteção à própria imagem.
Prejudicado, assim, o pedido indenizatório no valor de R$ 100.000,00 pelos prejuízos alegadamente causados à imagem da associação autora (página 19, item C, ‘iii’).
No mais, não há outras preliminares ou nulidades aparentes.
Passo ao mérito.
Pese a orientação já sinalizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento do agravo de instrumento interposto pelo réu, ressalvo, com a devida vênia, o entendimento absolutamente distinto deste magistrado acerca da questão colocada em litígio.
O humor é uma importante forma de manifestação artística e cultural, instrumento relevante de compreensão dos grupos sociais ao longo da História. É, sobretudo, fruto de expressão do espírito e da inteligência.
Tormentoso estabelecer critérios científicos para definir e identificar o humor.
O assunto remete à discussão acerca da pornografia travada na Suprema Corte dos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970. São emblemáticos os julgamentos daquele Tribunal que abordam os contornos do que poderia ser considerado como obscenidade e, portanto, passível de banimento.
Buscava-se a interpretação da primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, que impede edição de lei pelo Congresso que limite a liberdade de expressão .
Mais do que a análise do cotejo entre o direito individual à liberdade de expressão e autonomia privada para o consumo desse material e os interesses públicos supostamente violados pela propagação da pornografia, a questão ganhou relevo pela própria dificuldade em se definir o que poderia ser considerado como um material obsceno ou pornográfico.
O juiz Potter Stewart da Suprema Corte, ao abordar o problema, proferiu uma frase que se tornou célebre na jurisprudência norte-americana: “eu não consigo definir a obscenidade e talvez eu nunca consiga. Mas eu sei o que é quando a vejo” (tradução livre).
Evidente que, àquela época, os tempos eram bem diferentes. Questionava-se, inclusive, a possibilidade de publicação e distribuição de obras literárias com conteúdo considerado obsceno, o que hoje seria inimaginável.
Todavia, a dificuldade de se definir o que era pornografia guarda interesse.
O problema se repete no caso do humor. Como delimitar o que é humor para, apenas então, discutir se o Estado pode ou não interferir na liberdade de expressão. A exemplo da feliz observação do juiz norte-americano, qualquer pessoa tem capacidade de discernir, com um pouco de boa vontade e um mínimo de inteligência, o que é uma manifestação humorística, distinguindo-a de uma simples opinião.
Essa introdução parece-me relevante, pois a vedação ou limitação ao humor esbarra em valores constitucionalmente garantidos e direitos fundamentais, tais como a liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5º, IV, da Constituição Federal), da expressão da atividade artística (inciso IX) independentemente de censura ou licença, bem como o livre exercício da profissão (nas hipótese de comediante profissional).
O humor tem como uma das suas finalidades a diversão e, não raro, é marcado pela descontração; vale-se do exagero, da hipérbole e do absurdo para provocar o riso; é uma constatação banal, mas que deve ser tomada como premissa no caso dos autos, pois é absolutamente inadequado interpretar uma piada no seu sentido literal, tal como pretendido pela associação autora.
São interessantes as observações do professor Cláudio Luiz Bueno de Godoy[1]:
“(…) É verdade que, especialmente nesses casos (o autor se refere a programas humorísticos e caricaturas), os direitos da personalidade devem ser encarados sem se desconhecer que o exagero é ínsito àquelas manifestações de humor. Daí que, em si, o exagero não pode ser causa de dano à personalidade como o é em outros campos. Em diversos termos, apenas em condições extremas e explícitas será possível enxergar ofensa à honra ou à imagem, especialmente, derivada de manifestação exagerada, mas com finalidade humorística. Isso porque, afinal, como é evidente, o humor também não serve a mascarar ou a justificar conduta que seja deliberadamente ofensiva a outrem. Por certo que a roupagem humorística não constitui um salvo-conduto contra a infringência proposital a direitos da personalidade…”.
Nesse ponto, oportuna a distinção trazida por Manuel da Costa Andrade[2] acerca da roupagem e da mensagem ínsitas às manifestações humorísticas.
O humor, em regra, carrega uma roupagem própria e característica de sua forma de expressão, que, como visto, é marcada pelo exagero, muitas vezes pelo grotesco. E esse modo de linguagem, por óbvio, não pode gerar qualquer violação a direitos da personalidade. Em suas palavras:
“(…) à roupagem cabe, assim, uma função prevalentemente apelativa: emprestar visibilidade e força à mensagem a transmitir. Acresce que é sobretudo na roupagem que se actualiza a liberdade de criação artística da sátira e da carictura. O que confirma a expectativa já antecipada e segundo a qual a roupagem não colidirá normalmente com a dignidade pessoal. A acontecer, a colisão há-de, em princípio, levar-se à conta de custo social a suportar em nome da liberdade de criação artística. Em regra, ela aparecerá como socialmente adequada, não se revestindo daquela soziale auffälligkeit que na já citada formulação de Kakobs constitui a marca da tipicidade. E isto, importa sublinha-lo, postas entre parênteses as questões do bom gosto ou da velência estética da manifestação concreta da sátira ou caricatura.”
Vivemos num mundo aparentemente contraditório: de um lado, expandem-se formas novas formas de humor escrachado, como se percebe em programas televisivos, sites na internet ou em espetáculos de show do tipo stand up comedy”, como retratado nos autos.
Em contrapartida, é cada vez mais perceptível uma exacerbação da sensibilidade da opinião pública, avessa ao humor  “chulo” (ou talvez à explicitação dessa forma de humor) ou mesmo a qualquer tipo de exploração das diferenças.
É um reflexo do “politicamente correto”. Elias Thomé Saliba, professor titular de História da Universidade de São Paulo e profundo estudiosos do humor, aborda com propriedade esse fenômeno:
“(o politicamente correto) é uma criação ideológica característica de sociedades que perderam o norte dos padrões morais e acabaram por impor regras casuísticas tópicas, que só conseguem estabelecer limites arbitrários. Batizado com outros nomes ou disfarçado de alguma forma de censura, o ‘politicamente correto’ sempre existiu em sociedades que viveram momentos distópicos, quando a ausência de cenários futuros deixou de ensejar padrões morais estáveis. O resultado é um moralismo nervoso que se manifesta aqui e ali, meio esquizofrênico, tópico, que não sabe bem a que veio e, na história, nunca resultou em boa coisa.”
Manifestações humorísticas que eram bastante comuns e apreciadas no passado já não mais são aceitas pela sociedade contemporânea (ou por parte dela). Vale mencionar, como ilustração, um famoso programa humorístico dos anos 70 e 80 chamado “Os Trapalhões”, da Rede Globo de Televisão. Um dos participantes (Antônio Carlos Bernardes Gomes, cuja alcunha era “Mussum”), negro, era frequentemente associado à figura de um cachaceiro e de um macaco. À época, tais insinuações eram consideradas inocentes e perfeitamente assimiláveis pela audiência.
Essas mesmas piadas, acaso repetidas nos dias atuais, certamente gerariam enorme grita, quiçá com repercussão criminal.
A questão, inicialmente simples, convida à reflexão. Em realidade, é interessante perquirir o próprio conceito de ato ilícito e, no limite, a eficácia da intervenção do Direito como sistema de controle e organização social.
Considero que, no aspecto jurídico, a expressão humorística deve ser respeitada num grau extremamente elástico, independentemente do tipo, da qualidade e, inclusive, do assunto tratado. Mesmo os temas que consistem em tabus sociais podem ser objeto de humor. Exemplos ajudam a construir o raciocínio.
Em data recente houve uma polêmica acerca da instalação de uma estação de metrô em Higienópolis, tradicional bairro da cidade de São Paulo, que reúne grande concentração da comunidade judaica.
Em síntese, alguns moradores do bairro, tido como elitizado, supostamente questionaram a necessidade da linha metroviária no local, frequentado por “gente diferenciada” que não necessitaria daquele meio público de transporte. Não desejavam, em realidade, a popularização do bairro.
Diante da celeuma causada pela posição aparentemente segregadora, um humorista conhecido como “Danilo Gentili” utilizou-se das redes sociais para divulgar a seguinte piada: “entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz“, em clara referência ao campo de concentração nazista utilizado no período da Segunda Guerra para exterminar judeus.
Como é cada vez mais comum no cenário contemporâneo, em que as comunicações são verdadeiramente instantâneas, o texto gerou inúmeras críticas dos mais variados segmentos da sociedade, sendo certo que o episódio assumiu grandes proporções.
O humorista, de imediato, formulou pedido de desculpas na mesma rede social, pela qual afirmou que sua intenção, como comediante, nunca foi trazer nenhum outro sentimento ao público que não fosse alegria.
Pode-se questionar se o referido humorista foi feliz, ou não, em fazer uma brincadeira com uma matéria tão sensível. Pode-se mesmo afirmar que demonstrou grande falta de tato, até mesmo por formular essa piada numa rede social, cujo alcance é inimaginável.
Mas, a meu sentir, parece-me evidente que o humorista não cometeu qualquer ato ilícito ao simplesmente fazer uma piada que envolveu o judaísmo. Afirmar que ele corroborou a prática nazista seria uma conclusão absolutamente ridícula, hipócrita e desconectada com a realidade.
Na última virada de ano, o piloto alemão Michael Schumacher sofreu um gravíssimo acidente ao praticar esqui e permanece internado em estado de coma devido ao traumatismo craniano. Nesse mesmo período, o lutador Anderson Silva machucou-se seriamente em uma luta em que disputava o título mundial, na qual fraturou diversos ossos de sua perna.
Malgrado a repercussão mundial desses tristes acontecimentos, não tardaram surgir piadas envolvendo esses episódios nas redes sociais, tais como: “o Anderson Silva encontrou Michael Schumacher no hospital e tiveram uma conversa sem pé nem cabeça”.
A brincadeira foi infeliz? Talvez sim. Inoportuna, diante do sofrimento de fãs e familiares? Provavelmente. Engraçada ou espirituosa? Não interessa. Mas, há de se convir, quem conta essa piada não comete um ato ilícito e, tampouco, deseja o mal aos atletas. Apenas aproveita a ligação desses acontecimentos para fazer uma conexão humorística.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao caso dos autos.
Não é admissível sequer cogitar que o réu nutra algum tipo de desprezo em relação aos portadores de deficiência física ou mental, assim como não é possível afirmar que as pessoas em geral tenham efetivamente problemas em relação às loiras, aos portugueses, aos gagos…
Qualquer piada, desde a mais singela possível, pode dar azo a uma interpretação cruel. Ora, quem brinca dizendo que “mulher no volante, perigo constante” (minha avó fazia essa brincadeira!) pode ser tachado de machista, sexista, insensível à igualdade dos sexos, às conquistas das mulheres nas últimas décadas etc.
Tudo isso para dizer que uma piada é, afinal, apenas uma piada. Simples manifestação cultural, um costume social, um atributo da inteligência humana. Não há, em regra, uma ofensa a quem quer que seja. A pior consequência de uma piada infeliz, que cruza os limites toleráveis da audiência, é o desprezo, o silêncio.
Há, por certo, pertinência em analisar os limites do humor. Mas isso apenas em outra perspectiva, fora do espectro do Direito, notadamente da responsabilidade civil. A ideia do politicamente correto ou mesmo os valores implícitos que motivam a existência ou receptividade de determinado tipo de humor devem ser (como de fato são) estudadas pelas ciências sociais e pela psicologia.
Pode-se sofisticar o raciocínio e cogitar que o humor tem uma função de violência simbólica (emprestando, de modo impróprio, um conceito de Pierre Bourdieu), perpetuando diferenças e preconceitos sob o manto disfarçado do cômico. São todas discussões plenamente válidas.
Mas, repito, afirmar que uma piada é um ato ilícito não me convence.
Atribuir ao Poder Judiciário a função de julgar uma piada é um verdadeiro nonsense: interpretar, com critérios tradicionais hermenêuticos do nosso ordenamento, uma manifestação humorística, equivale a propor uma ação de divórcio de Bentinho e Capitu, a instaurar um inquérito policial para investigar a morte de Odete Roitman ou, ainda, determinar a prisão dos atores que atuaram como mafiosos no filme “O Poderoso Chefão” por formação de quadrilha.
Essa é a linha que, portanto, impede a análise das piadas noticiadas na inicial. Penso que a intervenção do sistema jurídico nesse tema é inócuo.
Não se quer dizer que o humor poderá servir como excludente de responsabilidade em toda e qualquer manifestação. Evidente que é possível admitir, em determinadas situações, a colisão entre princípios fundamentais da liberdade de expressão e a proteção dos direitos da personalidade.
Mais exemplos para facilitar a fundamentação: um caso que ganhou destaque envolveu a atriz “Carolina Dieckmann” e o programa humorístico “Pânico na TV”, então exibido pela emissora “RedeTv”. Havia um quadro denominado “As Sandálias da Humildade”, no qual os integrantes da atração procuravam celebridades com perfil que associavam à “arrogância”, propondo (ou exigindo) a elas que calçassem as chamadas as “Sandálias da Humildade”, numa demonstração de sua “humildade”.
Vários artistas participaram da atração, contrariados ou não.
Ocorre que, no caso de Carolina Dieckmann, houve expressa recusa da artista em contribuir para o quadro.
Nas oportunidades em que era interpelada pelos comediantes, a atriz simplesmente os ignorava, demonstrando claramente que não gostaria de fazer parte da atração. Essa reação, em realidade, agradou aos humoristas, que passaram a realizar uma verdadeira perseguição à atriz. Tudo devidamente registrado pelas câmeras de televisão, sendo certo que os “capítulos da novela” eram semanalmente explorados no programa, catapultando os índices de audiência.
A situação chegou a tal extremo que a produção do programa contratou os serviços de um caminhão com um guindaste, instalando-o defronte à residência da atriz, com os humoristas fazendo de tudo para chamar sua atenção (com um megafone) em seu próprio apartamento. Carolina Dieckmann recorreu ao Poder Judiciário do Rio de Janeiro, obtendo sentença condenatória de indenização por danos morais e, ainda, tutela inibitória proibindo o programa de exibir sua imagem ou fazer qualquer referência ao seu nome .
Nesse caso, é cristalino que houve uma verdadeira perseguição à artista, comprometendo a sua vida diária e violando o seu direito de ir e vir, sua privacidade. Seria um despautério permitir que essa postura incisiva prevalecesse protegida pela roupagem de humor.
Da mesma forma, o humor pode ser intolerável quando destinado especificamente a alguém, constrangendo-o perante o grupo de trabalho, familiar ou social. Com efeito, há casos na jurisprudência que caracterizam assédio moral no ambiente de trabalho ou bullying escolar. Ainda que, no limite, tais gozações pudessem ser enquadradas como piadas, têm uma repercussão direta na esfera de personalidade da vítima, legitimando e impondo a atuação do sistema judicial.
Há, em tais hipóteses, um destinatário específico, uma vítima a ser protegida. A liberdade de expressão é exercida de modo abusivo e, como tal, deixa de configurar excludente de responsabilidade.
Não é, no meu entendimento, o caso dos autos, sendo certo que inexiste a prática de ato ilícito pelo réu, protegido que está pela regra do artigo 187 do Código Civil. Age em exercício regular de direito (liberdade de expressão e manifestação artística).
A ótica que me parece mais adequada é prestigiar a liberdade de expressão e da atividade artística, sem qualquer juízo de valor a respeito do conteúdo e, sobretudo, da qualidade do humor praticado.
Nesse ponto, não se pode deixar de observar o caráter elitista da observação constante da inicial no sentido de que o réu “derrapa no tom da elegância”. O humor, a todo sentir, não tem que ser necessariamente elegante ou inteligente. Aliás, seria presunçoso dizer que apenas o humor inteligente pode ser realizado.
Em decisão do Superior Tribunal de Justiça (Resp 736.015), a Ministra Nancy Andrighi assentou que “a questão paralela posta pelas recorrentes, a respeito do ‘nível’ do humor praticado pelo periódico – apontado como ‘chulo’ – não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas envolvidos; a prestação jurisdicional deve se limitar a dizer se houve ou não ofensa a direitos morais das pessoas envolvidas pela publicação.“
Prossegue afirmando que não cabe ao Judiciário “dizer se o humor é ‘inteligente’ ou ‘popular’. Tal classificação é, de per si, odiosa, porquanto discrimina a atividade humorística não com base nela mesma, mas em função do público que a consome, levando a crer que todos os produtos culturais destinados à parcela menos culta da população são, necessariamente, pejorativos, vulgares, abjetos, se analisados por pessoas de formação intelectual ‘superior’ – e, só por isso, já dariam ensejo à compensação moral quando envolvessem uma dessas pessoas, categoria na qual as recorrentes expressamente se incluem logo na petição inicial do presente processo. A tarefa de examinar aquilo que se poderia chamar de ‘inteligência’ do humor praticado cabe, apenas, aos setores especializados da imprensa, que concedem prêmios aos artistas de acordo com o desempenho por eles demonstrado em suas obras“.
Em conclusão: o juiz não pode dizer se a piada é boa ou ruim, se o humor tem qualidade ou não tem.
Ante o exposto, julgo improcedentes os pedidos iniciais. Revogo a liminar anteriormente concedida.
Custas e despesas pela associação autora. Não há condenação em honorários.
São Paulo, 29 de janeiro de 2014


Publicado por Carlos Garbi em:
Civil, Constitucional, FAMÍLIA, Variedades
Foto: Justiça pela Metade - newsrondonia - Google.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Possível prevenção do autismo no pré-natal?



Alysson Muotri
O espectro autista afeta cerca de 1% da população mundial e é caracterizado por dificuldades na fala, relações sociais e comportamentos estereotipados, comprometendo a qualidade de vida e independência dos pacientes.
Formas sindrômicas de autismo, como a síndrome de Rett ou a síndrome do X-frágil são, em geral, mais severas clinicamente. Porém, estes tipos de autismo resultam em modelos genéticos mais simples que têm facilitado o entendimento do autismo, pois os diversos tipos de autismo possuem um denominador comum. Modelos animais da síndrome do X-frágil recapitulam alguns comportamentos autistas nos camundongos. Da mesma forma, sabe-se que certas drogas, quando administradas em roedores, também induzem comportamentos autistas nesses animais. É o caso do anti-convulsivo valproato de sódio que, quando administrado em ratas grávidas, geram prole com sintomas do autismo. Esses modelos animais, apesar de não refletirem completamente a condição humana, são ferramentas experimentais excelentes, permitindo testar hipóteses que são moralmente inaceitáveis em seres humanos.
Recentemente, foram publicados na revista cientifica “Science” resultados que mostram ser possível prevenir o autismo nesses dois modelos experimentais: em animais previamente tratados com valproato de sódio e em camundongos geneticamente manipulados para representar a síndrome do X-frágil (Tyzio et al, 2014). Nesse trabalho, os pesquisadores trataram as fêmeas grávidas com a droga bumetanida, um tipo de diurético também usado para hipertensão arterial, um dia antes de parir. Filhotes nascidos das mães tratadas não apresentaram distúrbios comportamentais semelhantes ao autismo. Literalmente, conseguiram prevenir o aparecimento desses sintomas ainda na gravidez, sugerindo que o autismo possa ser tratado ainda no útero.
Esses dados parecem dar suporte a um ensaio clínico europeu feito com a bumetanida em 60 crianças autistas de alto-funcionamento, também conhecido como Aspergers, sugerindo uma melhora no quadro clínico (Lemonnier et al, 2012). Essa droga mimetiza os efeitos da oxitocina, um hormônio liberado durante a gravidez que protege o feto, além de facilitar a relação afetiva da mãe com o futuro bebê. Nos roedores, a bumetanida foi responsável por diminuir a alta excitação em certas regiões do cérebro, algo também observado em pacientes autistas, ela agiu como um freio eletroquímico, atuando a comunicação neuronal.
Apesar de animadores, os resultados tem pouca aplicabilidade em humanos. Além de não sabermos se o processo também acontece em humanos, também não temos como diagnosticar o autismo esporádico, a grande maioria dos casos, em fetos para um eventual tratamento durante a gravidez. De qualquer forma, o estudo chama a atenção para esse momento do parto, quando acontecem diversas alterações neuroquímicas no cérebro do feto, importante para o desenvolvimento normal do indivíduo.
Esse estudo, junto com outros semelhantes, soma-se às evidências de que o autismo é tratável, e possivelmente curável. Esse tipo de notícia é que reforça a esperança daqueles que lutam para tornar melhorar a qualidade de vida dos autistas e seus familiares.
FONTE:
Foto: Google
http://g1.globo.com/platb/espiral/

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Autismo retratado em 'Amor à vida' passou longe da realidade, diz psicóloga



Segundo pesquisadora, as características do transtorno de Linda, o seu tratamento e seu relacionamento foram tratados com irresponsabilidade
 por Luciana Galastri

Linda e o advogado Rafael (Foto: Divulgação)
Linda, personagem de "Amor à Vida", novela das oito que acabou na última sexta-feira, 31, teve um final feliz. Superou as dificuldades impostas por ser autista, virou artista e casou com um advogado que a amava apesar de suas limitações. Mas a forma com que o autismo foi retratado na trama de Walcyr Carrasco levantou questionamentos na comunidade científica. As características apresentadas por Linda não seriam consistentes com as de alguém com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o tratamento mostrado também fica longe da realidade e o relacionamento com o advogado passa não apenas por questões éticas como também limites legais.
Um texto que viralizou sobre o assunto é “E a moça autista da novela, heim?”, da pesquisadora do LAHMIEI, da Universidade Federal de São Carlos, Ana Arantes. Nele, Ana aborda os temas citados acima com o olhar da psicologia e chega à conclusão que o caso de Linda é completamente desconectado da realidade de um autista. “As características demonstradas pela Linda no desenvolvimento da personagem são confusas e muitas vezes jamais se enquadrariam nas características de pessoas com TEA”, escreve Ana.
Conversamos com a psicóloga para entender melhor essa questão. Confira a entrevista:
GALILEU - Em seu texto, você fala que Linda não apresenta características autistas. Quais são as características que classificam o tipo de autismo que ela deveria ter, caso o personagem fosse consistente, desde o início da novela?
É difícil falar sobre uma personagem de ficção, mas no início da novela parecia que Linda tinha muitos comprometimentos cognitivos, comportamentais e de socialização. Ela poderia até ser ser localizada como autista típica dentro do espectro autista. Em um certo momento da novela foi mostrado que o tratamento mais intensivo dela estava começando naquele ponto, com o psicólogo e o fisioterapeuta, então entendíamos que ela não tinha tido tratamento desde o início da infância. Nesses casos, sabemos que a velocidade do desenvolvimento das habilidades de comunicação e socialização é mais lenta, porque quanto mais cedo e mais intensivo é o tratamento especializado, maiores as chances da criança se desenvolver de maneira satisfatória.
E quais são as falhas do tratamento mostrado na novela?
Sempre me pareceu que o tratamento era mais centrado na mãe do que propriamente na Linda. É claro que a família tem de ter e tem participação importante nas estratégias desenvolvidas pelos profissionais, mas não era esse o foco na novela. Esse é um erro grave e é muito triste que ele tenha sido cometido. Eu acho que isso ainda é resquício de preconceitos errados difundidos por teorias psicológicas ultrapassadas que depositavam a "culpa" do autismo de uma criança no comportamento da mãe. Uma dessas teorias que foi muito famosa por um tempo é a da "mãe geladeira", que dizia que a criança havia se voltado para dentro de si mesma para se proteger da mãe que era refratária ao seu amor. Hoje em dia sabemos que o autismo é um transtorno complexo, de base genética e comportamental e que ninguém é "culpado" por uma criança autista.
''Hoje em dia sabemos que o autismo é um transtorno complexo, de base genética e comportamental e que ninguém é "culpado" por uma criança autista.''
O tratamento psicológico da Linda praticamente não foi mostrado, na verdade. Algumas intervenções do psicólogo da novela eram sempre no sentido de "ensinar" alguma habilidade para a menina, só que de maneira muito fora da realidade de uma sessão de intervenção com autistas. Me lembro de uma cena em que o psicólogo mostrava um cartaz para Linda e dizia que ela tinha que seguir aquelas instruções para arrumar a cama. Veja, se uma criança tem sérias dificuldades de linguagem e comunicação, sem nem falar do comprometimento cognitivo, como ela pode seguir regras escritas ou mesmo desenhadas num cartaz?
Qual é o tratamento correto para o transtorno que Linda, em teoria, deveria possuir na trama?
O tratamento comprovadamente eficaz e recomendado para o TEA é o baseado em ABA (Análise do Comportamento Aplicada, na sigla em inglês), que consiste em um plano de intervenção intensiva e precoce, que tem como objetivo ensinar para a criança, de maneira sistematizada, todas as habilidades que ela precisa aprender para ter uma vida saudável, feliz e produtiva. São ensinadas habilidades de comunicação, de socialização, habilidades acadêmicas e de vida diária (como se alimentar, higiene pessoal, se vestir, por exemplo) e até mesmo preparação e treinamento para o trabalho. Parte-se daquilo que a criança já é capaz de fazer, mesmo que seja muito incipiente, e vai-se construindo todo esse repertório de comportamentos ao longo do desenvolvimento da criança até que ela alcance autonomia - ou pelo menos, precise de menos suporte - para ter uma vida normal.
Sobre o relacionamento de Linda com o advogado, você explica em seu artigo que, dadas as características da própria personagem apresentadas pelo programa, não seria correto que ela namorasse um adulto. Basicamente, por que se trataria de abuso de incapaz. Casos como esse são previstos por alguma lei?
Se a pessoa com TEA for considerada "legalmente incapaz”, pode ser enquadrado no artigo 217 do Código Penal, que fala sobre crime sexual contra incapaz.
''Linda, aparentemente, não demonstrava entendimento do que estava acontecendo no seu relacionamento com o advogado''
Acho que o que é importante é ressaltar que o autismo é um espectro: dentro dele haverá uma imensidade de diferenças individuais nas habilidades e no comprometimento social, comunicativo, comportamental e cognitivo de cada autista. Há várias pessoas com TEA que têm uma vida relativamente autônoma e que precisam de pouco ou nenhum suporte externo. Mas uma grande parte, infelizmente, precisará de apoio profissional, social e da família por toda a vida. Pessoas autistas podem e devem ter relacionamento interpessoais, cada um dentro de suas características individuais e de acordo com as habilidades que tem naquele momento.
O problema que eu vejo no que foi mostrado na novela é que a personagem Linda, aparentemente, não demonstrava entendimento do que estava acontecendo no seu relacionamento com o advogado. Na cena em que ela é pedida em casamento, ela pergunta "o que é casamento?" e na cena do casamento mesmo parece que ela está totalmente alheia ao que está acontecendo. Eu fico pensando, que tipo de decisão madura, consciente e responsável essa menina pode ter tomado ao aceitar se casar? É uma discussão importante, que o autor infelizmente escolheu não fazer, ou se fez, foi de maneira superficial.
Qual foi a repercussão de seu artigo?
Ah! Tem sido muito recompensador, além de divertido. Eu escrevi aquele artigo no meu blog, O Divã de Einstein, por demanda dos amigos que estavam lotando minhas caixas de mensagem com perguntas sobre a personagem da novela. Achei que isso indicava que as pessoas tinham muitas dúvidas sobre o assunto, e acho que acertei no momento e no assunto do post, por isso teve tanta repercussão.
Os comentários que mais me emocionam e me preocupam são os das mães e familiares de autistas, porque mostram como os profissionais de saúde e educação, no Brasil, não estão preparados para atender a essa população.
É claro que sempre tem as pessoas que não entenderam o texto e os famosos "mas essa é a sua opinião", desconsiderando completamente que o artigo foi embasado cientificamente. Um tipo de comentário bem comum foi "mas é só novela! é só ficção!", o que eu sempre rebato dizendo que a novela tem um papel social importante na conscientização e na quebra de preconceitos e estereótipos. Mas muitos comentaristas também concordaram que o assunto estava sendo tratado de maneira bem irresponsável pela novela, e elogiaram o texto, o que é muito bacana!
Existem outros filmes ou livros em que os autistas também foram caracterizados de forma errônea?
Eu já vi em alguns sites que o personagem Forrest Gump, do filme com mesmo nome, seria autista. Eu acho que não se enquadraria nas características porque ele é muito comunicativo, socialmente habilidoso e não parece apresentar problemas de comportamento. Ele teria uma deficiência cognitiva moderada e não autismo. Também é comum ler por aí que o Sheldon da série The Big Bang Theory é autista. Além de já ter sido desmentido na própria série - lembre que "my mother had me tested!" - a personagem é mais uma caricatura de uma pessoa sem habilidades sociais do que de um autista.
Que obras você recomendaria para alguém que quer entender melhor o comportamento autista?
Eu recomendo o livro Autismo: Não espere, aja logo! - Depoimento de um Pai sobre os Sinais de Autismo, do Francisco Paiva Junior (que também é editor da Revista Autismo). Nele, o autor mostra como foi a experiência de descobrir que seu filho era autista e enfatiza a importância do tratamento precoce e intensivo das crianças com TEA.

 por Luciana Galastri
FONTE:
 http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2014/02/autismo-retratado-em-novela-passa-longe-da-realidade.html