1. Introdução
A ciência há longo dos anos, tem se voltado a desvendar os mistérios da humanidade. Desde os primórdios o homem aguçado por sua curiosidade, desenvolveu o habito de explorar os fenômenos a sua volta, sendo assim se levantou varias teorias tentando esclarecer as complexidades do homem e do mundo que o cerca, porém alguns fenômenos ainda se mostram bastantes misteriosos no meio social e diante do mundo cientifico.
O autismo tem sido um desses fenômenos que se mostra cada vez mais enigmático para os pesquisadores, pois embora muitos estudos apontem para um transtorno genético, temos em vista que os fatores sociais e os efeitos comportamentais desse transtorno atingem patamares mais elevados no meio em que vivemos; o que acaba dificultando o entendimento sobre a síndrome e levando a um agravamento maior do quadro clinico de seu portador, assim como um respectivo desanimo e estresse de seus familiares.
O filme “Rain Man” foi lançado em 1988 dirigido pelo diretor Barry Levison e no seu enredo mostra a história de dois irmãos: os personagens Charlie Babbitt interpretado pelo autor Tom Cruise e personagem Raymond Babbitt, portador da síndrome, que é interpretador pelo ator Dustin Hoffman. A história do drama começa quando Charlie Babbitt viaja para um hospital psiquiátrico à procura de saber quem herdou a maior parte da herança deixada por seu pai. Por meio dessa procura, Charlie conhece seu irmão Raymond, o autista, daí em diante a história passa um clima emocionante e dramático ao publico que assiste.
De acordo com Santiago (2005), o autismo é mais conhecido como um problema que se manifesta por um alheamento da criança ou adulto acerca do seu mundo exterior encontrando-se centrado em si mesmo, ou seja, existem perturbações das relações afetivas com o meio, o que pode ocasionar um comportamento diferenciado de outras pessoas da sua idade.
Para uma melhor análise da questão apontada nesse artigo, a leitura segue-se sobre uma visão psicanalítica do filme “Rain Man”, baseados nos autores como: Doria et al (2006) e Pinheiro (2008) que nos permitiram obter uma apreciação mais madura para, através deste, contribuir com a sociedade no esclarecimento mais eficaz sobre a síndrome do autismo.
2. Definições do Autismo
A palavra “autismo” deriva do grego “autos”, que significa “voltar-se para si mesmo”. A primeira pessoa a utilizá-la foi o psiquiatra austríaco Eugen Bleuler para se referir a um dos critérios adotados em sua época para a realização de um diagnóstico de Esquizofrenia. A expressão referia-se a tendência do esquizofrênico de “ensimesmar-se”, tornando-se alheio ao mundo social – fechando-se em seu mundo, como até hoje se acredita sobre o comportamento autista. (NETO, 2010)
Desde a década de 40 até aos anos 60, de modo geral, acreditava-se que um indivíduo autista tinha o desejo consciente de não participar em qualquer interação social (SOUSA, 2009/2010). Para Leo Kanner (1943), psicólogo norte americano, o autismo era causado por mais altamente intelectualizados, pessoas emocionalmente frias e com pouco interesse nas relações humanas (apud CID, 1993). O autor sublinha - de acordo com o relato dos pais realizado no seu estudo de 11 casos com crianças autistas - a precocidade do aparecimento da síndrome, situando-a como “uma solidão autística extrema, que desdenha, ignora e exclui tudo o que vem do exterior até a criança” (PINHEIRO, 2008). Após essa definição, o autismo apresentou-se como um mundo distante, estranho e cheio de enigmas, que se refere ao próprio conceito de autismo e às causas, às explicações e às soluções para esse trágico desvio do desenvolvimento humano normal (COLL et al, 2004).
O autismo é caracterizado entre sinais e sintomas como uma tríade: distúrbios na sociabilidade, distúrbios na comunicação e estereotipias motoras. Manuais de diagnósticos como o DSM – IV TR e o CID 10 consideram autista o individuo que possui um total de seis itens citados abaixo, com pelo menos quatro características dos mesmos, tais como: na marcante lesão na interação social, destacada diminuição no uso de comportamentos não verbais múltiplos, tais como contato ocular, expressão facial, postura corporal e gestos para lidar com a interação social, dificuldade em desenvolver relações de companheirismo apropriadas para o nível de comportamento, falta de procura espontânea em dividir satisfações, interesses ou realizações com outras pessoas, por exemplo: dificuldades em mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse e ausência de reciprocidade social ou emocional.
No distúrbio da comunicação, considera pelo menos um dos seguintes itens: atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem oral, sem ocorrência de tentativas de compensação através de modos alternativos de comunicação, tais como gestos ou mímicas, diminuição da habilidade de iniciar ou manter uma conversa com outras pessoas, em indivíduos com fala normal e ausência de ações variadas, espontâneas e imaginárias ou ações de imitação social apropriada para o nível de desenvolvimento.
Nos padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades, considera-se a manifestação de pelo menos um dos seguintes itens: a obsessão por um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse que seja anormal tanto em intensidade quanto em foco, fidelidade aparentemente inflexível a rotinas ou rituais não funcionais específicos, hábitos motores estereotipados e repetitivos, por exemplo: agitação ou torção das mãos ou dedos, ou movimentos corporais complexos e obsessão por partes de objetos.
Podemos ainda ressaltar aqui a estatística sobre a síndrome autista em relação a taxa de natalidade atualmente, que conforme Domingues (2003) a incidência dela encontra-se estimada em 01 portador para cada 1000 nascimentos, sendo 03 vezes mais frequentes no sexo masculino que no feminino. Sendo uma doença comprometedora do desenvolvimento infantil como um todo, que limita a vida da criança e de sua família. O que observamos no personagem Raymond Babbitt, a qual é do sexo masculino e envolve seu ciclo familiar por causa de suas limitações.
3. Análise do Filme em uma Visão Psicanalítica
As hipóteses de Kanner tiveram forte influência no referencial psicanalítico da síndrome que pressupunha uma causa emocional ou psicológica para o fenômeno, a qual teve como seus principais precursores os psicanalistas Bruno Bettelheim e Francis Tustin. (NETO, 2010). Bettelheim acreditava ser uma falha materna e Tustin explicava que o afeto materno funcionava como uma ponte entre a fase autista do desenvolvimento normal e a vida social, já que as crianças ainda não tinham aprendido os comportamentos sociais, e se esta ponte se rompesse poderia gerar um trauma psíquico.
Na psicanálise, o autismo é visto como uma síndrome psíquica desenvolvida na infância. Assim como os desejos sexuais que Freud afirma iniciar na infância, o autismo também seria um processo da mesma, que provavelmente seria acometido por alguma falha. Doria et al (2006) fala que esta falha está nas funções maternas e paternas:
“De acordo com a Psicanálise, o transtorno autista está relacionado com as falhas envolvendo as funções maternas e paternas. A falha decorrente no processo de desenvolvimento da função materna pode estar relacionada com o não cumprimento dela, ou seja, a mãe ou a pessoa que desempenha este papel não realiza adequadamente a sua função, deixando o bebê sem resposta quando o mesmo lhe pede um retorno.
Na função paterna, não há um investimento de um terceiro que venha contribuir para a constituição psíquica da infância” (DORIA et al, 2006, p.03)."
Esta mesma autora ainda aperfeiçoa “essa falha pode ser causada, entre vários motivos, pela depressão que interfere na capacidade materna em cuidar e envolver-se emocionalmente com o seu filho” (p.04) e a função paterna exacerbada ou renegada, pois “quando o filho exerce uma função renarcisante para o pai, o mesmo investe de modo mais significativo na criança, o que permite a triangulação na relação mãe-bebê.” (p.06).
Na visão de Lacan considera que o autismo está localizado no campo das psicoses, como uma resposta possível de um ser falante frente a um Outro, não propriamente constituído como tal, mas como real. A princípio, Lacan declara que “os autistas escutam a si mesmos” (apud 1975, p.12). Isto o leva a acrescentar que os autistas ouvem muitas coisas, e que este fato pode desembocar em alucinações. Duas características que ainda são citadas na reflexão de Lacan sobre as crianças autistas: uma que aproxima a criança autista do esquizofrênico e outra que caracteriza os autistas como seres bastante verbosos, mesmo que não se entenda bem o que dizem.
No caso do nosso personagem Raymond, que é um adulto de aproximadamente 50 anos, percebemos que esta explicação seria fundamental para uma hipótese diagnóstica, porque quando nascera seu pai lhe depositava uma grande expectativa por ser primogênito, o que era visto por ele como uma grande responsabilidade. Contudo, logo nasceu seu irmão Charlie, a qual se sentia na obrigação de cuida-lo até mesmo para agradar cada vez mais seu pai. Mas, por alguma eventualidade, Raymond deixou Charlie se machucar, a qual percebia que este tinha um grande apego por ele e isso lhe trouxe uma culpa eterna, onde não conseguia se perdoar, além de um sentimento de incapacidade e uma enorme angustia por não ter conseguido proteger seu irmão como deveria. Observamos, no discurso do mesmo, que isso lhe gerou um trauma, e o fazia sofrer todas as vezes que recordava.
Observando os sinais e sintomas do autismo, percebemos que o personagem portador do autismo apresenta características tais como: diminuição no uso de comportamentos não verbais múltiplos como na expressão facial e na postura corporal para lidar com o meio social em relação aos outros indivíduos, pois fisicamente ele é encurvado e com a expressão de solidão. Também apresenta dificuldade em desenvolver relações de companheirismo apropriado para o nível de comportamento, porque observamos que este não mostra interesse em se relacionar com outras pessoas; característica principal do autismo. Apresenta também ausência de reciprocidade social ou emocional, mostra-se frio em várias situações, demonstrando carência pelos seus desejos e sentimentos e habilitando as pessoas a serem compreensivas. Como cita o DSM IV, ele também destacada diminuição da habilidade de iniciar ou manter uma conversa com outras pessoas, porque vive em um mundo só seu, onde seus pensamentos mostram-se mais importantes. Lembrando que este é dotado de uma inteligência incrível e inexplicável que subestima a medicina e a sociedade.
Em relação ao tratamento, o analista primeiramente realizará uma entrevista inicial com a criança autista e seus pais. Conforme Bogochvol (2009), o diagnóstico de autismo orientado pela psicanálise lacaniana é realizado sob transferência (como qualquer diagnóstico).
No decorrer do tratamento, o analista deverá está orientado no sentido de, na experiência clínica, fazer emergir o lugar do sujeito, tratando de encontrar a via do Outro. Assim como cita Pinheiro (2008), esta é a aposta que se sustenta no que Lacan nos ensinou acerca do lugar do analista na clínica do autismo: “o fato de que eles não o escutam”. DORIA et al (2006) esclarece que para ocorrer este reconhecimento da criança como sujeito, o analista tentará trazê-la para a realidade, retirando-a do seu mundo particular, fazendo com que ela faça parte, interaja e reconheça os outros. O objetivo do analista é fazer com que esta criança possa vir a ser alguém, ser sujeito com individualidade, com subjetividade. Retirá-la, portanto, da posição em que era tomado, e sufocado, pelo desejo do outro e, com isso, possibilitar o surgimento de seus próprios desejos, suas próprias angústias para que possa vir a interagir com o mundo cheio de enigmas para serem descobertos.
Dessa forma, Bastos (2003) chama nossa atenção para o fato de que admitir a presença do analista e responder a ela, não é estar aquém da alienação, isto já se remete ao campo do Outro. O que não quer dizer que haja, contudo um par significante diferenciado, mas sim uma tentativa de remediar a inexistência do par primordial.
A partir do caso de Maria, por exemplo, que é uma criança autista de três anos de idade, Taffuri (2000), concluiu que desde o início do tratamento, “os grunhidos e os maneirismos” das crianças autistas podem ser compreendidos e usados pelo analista em sua natureza fenomenal, como sons, ritmos, movimentos e singularidades, e não como uma mensagem dirigida ao analista, a ser por ele interpretada ou traduzida, ou seja, devemos nos atentar a todos os movimentos e diferenciações linguísticas, da criança autista, apresentadas no momento do tratamento.
Para que o analista consiga chegar ao seu objetivo, ele terá que trabalhar com o desenvolvimento das funções materna e paterna por parte dos cuidadores da criança para que possa ter resultados positivos na terapia com a criança autista. Em alguns momentos, o próprio analista poderá desempenhar estas funções, contribuindo com o individuo para que ele possa ter relações com outras pessoas e ter uma vida produtiva. (DORIA et al 2006)
Na função materna Jerusalinsky (et al 1997) ressaltará que não é a ausência da mãe o que vai contribuir para a emergência do sintoma autista, mas “a radical ausência do desejo materno em relação ao filho autista.” Dirá ainda que “sempre encontramos perturbações intensas na ligação das mães com os filhos, concomitantes com os quadros de desconexão autística”, ressaltando, contudo, poder tratar-se de formações reativas às características do filho. Já na função paterna, Pinheiro (2008) deixa claro que podemos considerar a foraclusão do Nome-do-Pai, que conforme Lacan (1955-56) nos apresenta a partir do esquema R e I em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, inviabiliza a estruturação do campo da realidade, deixando o sujeito face à carência das amarras simbólicas, e consequentemente, exposto a uma hipertrofia do imaginário.
Como podemos observar grande parte dos autores aqui citados se referem à criança autista como estando ‘imersa’ na linguagem, mas aquém da alienação. Entretanto, a clínica nos abre o caminho, ao nos apontar um horizonte em que a criança autista, ao dar tratamento ao Outro devastador que lhe acossa, introduz, mesmo não tendo uma inscrição do falo que organize o seu mundo, uma possibilidade de invenção.
Mesmo que o encadeamento significante não se estabeleça, pode emergir um lugar que não seja anônimo, a partir da aposta no desejo, que fará com que o sujeito se reconheça naquilo que lhe faz enigma. (PINHEIRO, 2008).
Escrito por:
Eduardo Alexandre Teles,
Jakeline Martins,
Noel Francisco e
Tamires Alencar De Souza
Sobre o Trabalho:
Artigo apresentado na Faculdade de Ciências Aplicadas Dr. Leão Sampaio como um dos requisitos para à elaboração da média semestral na disciplina de Psicopatologia em Psicanálise do Mrs. Raul Max Lucas da Costa.
Bibliografias:
ÁVILA, Lazslo A. Psicanálise, educação e autismo: encontro de três impossíveis. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., III, 1, 11-20. Disponível em: http://www.fundamentalpsychopathology.org/art/mar0/1.pdf Publicado em 1998. Acessado em 2011.
BASTOS, Angélica. Medicação e tratamento psicanalítico do autismo. Pulsional: revista de psicanálise, ano XVI, n. 173, setembro/2003. Disponível em: http://www.editoraescuta.com.br/pulsional/173_03.pdf. Acessado em junho de 2011.
BOGOCHVOL, A. Comentários sobre o artigo “Autismo” e subjetividade materna. Disponível em: http://www.psicanaliselacaniana.com/mural/textos/documents/SobreoartigoAutismoesubjetividadematerna.pdf São Paulo. Publicado em 03 de novembro de 2009.Acessado em 26 de maio de 2011.
COLL, C; MARCHESI, A; PALACIOS, J. Desenvolvimento psicológico e educação. Transtornos de desenvolvimento e necessidades educativas e especiais. Porto Alegre: Artmed, 2004.
DOMINGUES, W.E. O autismo e sua relação com a psicanálise. Disponível em: http://www.celpcyro.org.br/v4/html/OAUTISMO.htm Publicado em 28 de setembro de 2003. Acessado em 26 de maio de 2011.
DORIA, N. G. D. M.; MARINHO, T. S.; FILHO, U. S. P. O autismo no enfoque psicanalítico. Disponível no site: www.psicologia.com.pt/artigos/textos/A0311.pdf Publicado em 10 de outubro de 2006. Acessado em 25 de maio de 2011.
DSM-IV-TR, Manual Diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Transtorno Autista. American Phychiatric Association. Porto Alegre: Artmed, 2002.
NETO. Autismo – um breve histórico. Disponível em:http://www.psicologiaeciencia.com.br/autismo-um-breve-historico Publicado em 05 de fevereiro de 2010. Acessado em 28 de maio de 2011.
PINHEIRO, M. F. G. Autismo e devastação. Disponível em:http://www.psicologia.ufrj.br/teoriapsicanalitica/pdfs/dissert_mariafatima.pdf Rio de Janeiro. Publicado em 2008. Acessado em 2011.
SANTIAGO, J.C. Autismo. Disponível em: http://www.jcsantiago.info/autismo.html . Publicado em julho de 2005. Acesso em maio de 2011.
SOUSA. M.E.M. A musicoterapia na socialização das crianças com perturbação do espectro do autismo. Artigo disponível em http://repositorio.esepf.pt/handle/10000/394. Porto Alegre: 2009/2010. Acessado em 2011.
TAFURI, Maria Izabel. O início do tratamento psicanalítico com crianças autistas: transformação da técnica psicanalítica? Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., III, 4, 122-145. Disponível em: http://www.fundamentalpsychopathology.org/art/dez0/7.pdf Publicado em: novembro de 2000. Acessado em maio de 2011.
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