Raimunda Gonçalves Melo, a Ray, é mineira de Luisburgo,
florista, casada com um subtenente do Exército e mora na Ilha do Governador, no
Rio de Janeiro. Nada a caracteriza e a ocupa mais do que ser mãe de Filipe, um
rapaz autista de 28 anos.
Filipe nasceu e se desenvolveu normalmente até um ano e meio
de idade. Falava muitas palavras e até cantarolava “Boi da Cara Preta”. Nos
meses seguintes começou a ficar quieto. Não respondia aos estímulos de palavras
e brincadeiras. Não interagia.
Hoje Filipe balbucia poucas palavras, mas se expressa de
várias formas. Faz pinturas abstratas em telas de até três metros. Olha o
Segundo Caderno, do jornal O Globo, diariamente. Seleciona os filmes que
pretende assistir, busca os trailers na internet e decide o programa da família
nas noites de terça – o dia em que o ingresso do cinema é mais barato.
Desde que Ray o ensinou a usar o Google, um mundo se abriu.
Quando ouve uma música em inglês ou alguém falando a língua estrangeira na TV,
Filipe arrisca escrevê-la num papel. E insiste para a mãe ajudá-lo a conferir a
grafia na internet. Para espanto de Ray, que não sabe inglês, o garoto quase
sempre acerta.
As associações que o cérebro dele é capaz de fazer escapam
da compreensão da família. Dia desses, quando viu a vinheta da novela Avenida
Brasil, Filipe puxou um papel e escreveu “Avenida Copacabana”.
Os avanços que Filipe conquistou se devem ao acompanhamento
que sempre recebeu no Hospital do Exército e ao compromisso de Ray. Foi ela
quem buscou as aulas de pintura, quem o matriculou na escola, quem fez tudo o
que pôde para ensinar o que sabia e aproximá-lo da sociedade – em vez de
excluí-lo por excesso de zelo, vergonha ou desesperança.
Ray é inconformada. Felizmente não é a única. A vida a
aproximou de outro inconformado, o biólogo paulista Alysson Muotri, um rapaz
que está construindo uma carreira brilhante e hoje é professor na Universidade
da Califórnia, em San Diego.
Ray ao lado de seu filho Filipe, um rapaz autista de 28 anos (Foto: Arquivo pessoal) |
No final de 2010, a equipe de Alysson chamou a atenção da
comunidade científica internacional ao conquistar três feitos inéditos:
- o grupo criou neurônios autistas em laboratório
- demonstrou que eles são diferentes dos neurônios normais
desde o início do desenvolvimento
- conseguiu tratar os neurônios autistas e fazer com que
eles se comportassem como neurônios normais
A matéria-prima que permitiu esse avanço foram células da
pele de pacientes autistas. Em laboratório, Alysson fez com que elas
regredissem ao estágio de células-tronco embrionárias (aquelas que são capazes
de originar qualquer tipo de tecido). Em seguida, as transformou em neurônios
idênticos aos dos pacientes.
As drogas que Alysson usou para curar os neurônios autistas
são tóxicas para uso humano. Ainda não representam a cura. Nos últimos anos, a
pesquisa avançou. Ele tem viajado o mundo para apresentar os resultados do
laboratório a empresas interessadas em testar nas células drogas novas ou
antigas que, potencialmente, poderiam curar o autismo.
O autismo afeta cerca de 1% das crianças norte-americanas. O
custo para o governo durante a vida de um único indivíduo autista beira os US$
3,2 milhões (quase R$ 6,5 milhões). Isso representa um custo anual de US$ 35
bilhões (quase R$ 71 bilhões) para a sociedade americana. Números semelhantes
se aplicam à esquizofrenia. Quase o triplo é gasto com o mal de Alzheimer.
Alysson e as empresas acreditam naquilo que tem sido chamado
de “reposicionamento de drogas”. A ideia é pegar uma droga que falhou em
estágios clínicos para uma doença “x” e testá-la contra uma doença “y”.
Remédios que já foram testados em humanos e não serviram para o Alzheimer podem
ser úteis para o autismo, por exemplo.
Como toda a etapa de estudos necessários para comprovar que
a droga é segura para uso em humanos já foi feita, a realocação de medicamentos
permite encurtar em pelo menos dois anos o tempo de chegada de um remédio ao
mercado.
Neurônios humanos são complexos. “Por isso aposto em novos
modelos produzidos a partir da reprogramação celular, gerando redes neurais
derivadas de pacientes em quantidades suficientes para testes em laboratório”,
diz Alysson.
Filipe usa arte para se expressar e faz pinturas abstratas em
telas de até três metros (Foto: Arquivo pessoal)
|
“Mesmo com as limitações da reprogramação genética – afinal,
não deixa de ser um modelo humano in vitro –, acredito que seja o que mais se
aproxima do sistema nervoso do paciente. O sucesso dessa nova forma de encarar
a busca por fármacos vai depender de centros criados a partir de consórcios
colaborativos e multidisciplinares entre cientistas e a comunidade clínica –
acelerando os testes em humanos”, escreveu Alysson recentemente no blog
Espiral.
Foi nesse ponto que a história dele e a de Ray se encontraram.
Juntos, pretendem convencer o governo federal e as agências de fomento (como
CNPq e Fapesp) a criar no Brasil o primeiro centro especializado em autismo.
Ali seriam feitas as pesquisas, mas não só isso. Os pacientes e as famílias
receberiam acompanhamento de diversos especialistas com o objetivo de
desenvolver as capacidades das crianças e integrá-las à sociedade.
Alysson está escrevendo o projeto em conjunto com
especialistas de outras áreas. A intenção é apresentá-lo em breve ao Ministério
da Saúde e ao Ministério de Ciência e Tecnologia.
Ray sonha em ver as obras de seu filho expostas
(Foto: Arquivo pessoal)
|
De sua parte, Ray não sossega. “O que faço é para meu filho
e para o de todas”, diz. O pleito das mães dos autistas chegou à presidente
Dilma numa cerimônia realizada no ano passado em Brasília. Ela disse ter
interesse em ouvir a proposta e pediu que procurassem Bigode, apelido de
Cândido Hilário, assessor da Secretaria de Assuntos Federativos da Presidência
da República.
Nos últimos meses, Ray falou com ele várias vezes por
telefone. Bigode prometeu visitá-la em breve na Ilha do Governador. Ray
acreditou. Nele e na transformação social que um governo é capaz de produzir
quando decide fazer isso.
Filipe anda produzindo como nunca. Ray sonha com o dia em
que ele possa ver suas obras expostas fora das paredes de casa. Ela procura
empresas que tenham interesse em estampá-las em embalagens de produtos ou em
anúncios promocionais.
“Se o Filipe puder reconhecer uma obra numa embalagem,
alguma coisa vai brotar na cabeça dele”, diz Ray. “O ser humano se torna
presente na sociedade quando realiza algo. Cada trabalho realizado é um novo
neurônio, uma nova esperança.”
Mãos à obra, Filipe, Ray, Alysson, Bigode, Dilma e quem mais
quiser se juntar ao bando dos inconformados.
CRISTIANE SEGATTO
Repórter especial, faz parte da equipe de
ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 17 anos
e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo.
Entre em
contato:
cristianes@edglobo.com.br
E você? Conhece alguma família que convive com o autismo ou
com outras necessidades especiais. O que acha que o governo e a sociedade
poderiam fazer para mudar a história deles?
RESPOSTA DO BLOG VIVÊNCIAS AUTÍSTICAS
ESTÁ NA CÂMARA FEDERAL PARA APROVAÇÃO O
PROJETO DE LEI No 1.631, DE 2011
Institui a Política
Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com
Transtorno do
Espectro Autista.
Autor: SENADO FEDERAL
Relatora: Deputada MARA GABRILLI
Palavras da Relatora
“Não porque os parlamentares desta Casa sejam insensíveis ou
ignorantes quanto ao tema. Pelo contrário, tenho certeza que muitos, senão
todos os parlamentares membros desta Comissão têm dentro de si a solidariedade
e o entendimento de como este Projeto é relevante.”
O
pedido da presidente Dilma ao dizer que tem interesse em ouvir a proposta, é para criar no Brasil o primeiro centro especializado em autismo.
Com
sua sensibilidade de mãe, quem sabe conhecedora do assunto autismo, é que pediu no
ano passado, que procurassem o assessor da assessor da Secretaria de
Assuntos Federativos da Presidência da República, Cândido Hilário.
A apresentação do projeto, ainda está sendo escrito pelo cientista brasileiro Alysson
Muotri em conjunto com outros especialistas.
Enquanto isso, milhares de pais de autistas, tropeçando nos
buracos dos caminhos mais pedregosos, depois de passarem pelo Senado Federal e no exame da Comissão de
Seguridade Social e Família, agora estão no aguardo da aprovação do PL 1.631,
de 2011 na Câmara dos Deputados, com pedido de urgência urgentíssima.
No
PL 1.631, de 2011, está implícita a transformação social que o governo da
presidente Dilma deseja, e é capaz de produzir, para evitar que cerca de dois milhões
de autistas do Brasil, e suas famílias sofram mais que o inevitável.
Nilton Salvador
Pai de Autista
rosandores@gmail.com
2 comentários:
Muita boa matéria adorei,
que realmente a realidade um dia mude para os autistas.
paz e luz
Liê e Gabi autista
Estaremos chegando à cura do autismo? Uma luz se vislumbra no horizonte.
Alysson é um grande cientista. Esperemos a resposta do governo brasileiro para a realização deste grande sonho.
Beijo,
Yvonne
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