*Manuel Vázquez Gil
A cena é uma criação imaginativa, mas os fatos e
resultados são reais, verificáveis em um monte de lugares nesta vasta rede
mundial: a maior potência econômica e militar do planeta aprovou um projeto
ambicioso, com o apoio da ONU e de todos os países filiados. Escolheu os dez
melhores analistas forenses da atualidade e disponibilizou-lhes o mais completo
laboratório, o do FBI.
Inicialmente, enviou a eles dez amostras de saliva
apenas numeradas, sem qualquer informação e pediu-lhes uma análise detalhada.
Em pouco tempo, as planilhas mostravam resultados conclusivos: a amostra 1
correspondia a um sujeito Down, a 2 a um Rett, a 3 a sujeito com
fenilcetonúria, a 4 era de um com síndrome de Williams o sujeito 5 tinha
predisposição a câncer de mama, o 6 era Xfrágil, o 7 tinha ELA, o 8 tinha
predisposição a diabetes, a 9 estava grávida na 26ª semana e o 10 era
geneticamente saudável.
Numa segunda etapa, enviou cinco mil amostras de
saliva, todas de autistas, com o pedido de encontrar um denominador comum. O
resultado das planilhas mostrou que não havia dois sujeitos com alterações
genéticas iguais. Receberam uma ordem de repetir os testes, revisar
procedimentos e planilhas. O mesmo resultado foi mostrado.
Numa manhã de inverno, o assessor especial da
presidência para o projeto em curso apareceu no laboratório. Reuniu a equipe de
gênios e abriu o jogo: um projeto tão dispendioso e importante não poderia
apresentar não-resultados, era preciso encontrar algo. Se verificassem um a um,
não encontrariam mutações?
Ah! Visto assim é diferente! A amostra 6 apresenta
mutação no gene AM8K; a 98 tem teor de zinco acima do normal; a 222 mostra uma
atipia no cromossomo 16; a 3448 tem intolerância a glúten; a 3905 tem uma
mutação no gene ADR3LB e a 5000 demonstra tendência a hipertensão.
Muito bem, usemos isso. Apresente o relatório
dessas cinco amostras e vamos traçar procedimentos de intervenções
medicamentosas e terapêuticas para elas.
E as outras 4995 o que fazemos com elas?
As outras são desvios estatísticos.
Trinta anos atrás, eu já tinha trinta anos e era
au...au...au...eu tinha aquele negócio! Parece que foi ontem, mas era uma
sociedade extremamente preconceituosa, onde as crianças normais não podiam
brincar com Mongolóides (era como se chamavam Downs), epilépticos morriam
durante uma convulsão porque ninguém chegava perto, ninguém tinha câncer, tinha
“a doença”, loucos e alcoólatras eram segregados em sanatórios até que a morte
os libertasse, homossexuais eram agredidos e até mortos, empalados,
soropositivos perdiam tudo, incluindo a liberdade e au...au...aqueles caras
estranhos que tinham aqueles comportamentos estranhos eram presos em clínicas,
quartos, sótãos e porões.
Nessa escuridão total, a errática ciência decidiu
que aqueles caras estranhos eram doentes que precisavam ser tratados como doentes
mentais. Terapias surgiram e cresceram com o objetivo de arrancar pedaços deles
sob a desculpa que os rituais tinham que ser extintos. Psicotrópicos cuidavam
de deixá-los anestesiados para que não machucassem ninguém. Escolas especiais
cuidavam dos poucos que ainda iam para a escola, mantendo-os à distância da
sociedade normal.
Duas gerações inteiras de autistas perdidas no
grande túnel da prepotente ciência.
Se há uma coisa da qual nossa geração pode se
orgulhar é o salto que conseguimos sobre o preconceito. Ficou a hipocrisia, mas
o preconceito como marca de uma sociedade inteira se esvaiu. Brincamos com
Downs, convivemos com soropositivos, auxiliamos epilépticos, já temos câncer,
loucos estão em casa, alcoólatras são tratados e acolhidos pela família, temos
amigos gays, que às vezes são até nossos companheiros, pais e mães dos nossos
filhos.
Mas aqueles caras estranhos que fazem coisas
estranhas ainda são vistos e tratados como diferentes, inclusive por seus
próprios pais. Somo lógicos e racionais: diante de uma condição médica,
buscamos soluções médicas, então levamos nosso cara estranho ao psiquiatra;
diante de uma condição psicológica, buscamos soluções psicológicas, então
levamos nosso cara estranho para extinguir “rituais”; diante de uma condição social,
buscamos soluções sociais, então fazemos de tudo para que se pareça conosco.
Além disso, temos informações da grande pesquisa do
grande projeto. Precisamos fazer quelação no nosso cara estranho, não havia uma
amostra com metais acima da média? Também dieta alimentar, afinal há uma
comprovada intolerância ao glúten. E aquelas três amostras com mutações
genéticas? Viu, não falei? O autismo é genético, precisamos encontrar a cura.
Todos encontraram a luz no fim do túnel, apenas nós
nos apegamos a dogmas mais antigos do que eu.
Podemos mudar a cena, mas só se quebrarmos dogmas e
adotarmos novos paradigmas. Que tal decretar a falência de tudo o que fizemos
com nossos filhos hoje adultos, e que comprovadamente não trouxe grandes
resultados em termos de lhe conferir autonomia, e aceitarmos o fato que grita
diante de nós eu esses caras estranhos que fazem coisas estranhas são pessoas,
seres humanos iguais a nós com seu jeito peculiar de pensar e ver o mundo? Que
tal dar-lhes alta e conferir-lhes o status de cidadãos plenos?
Há uma multidão de crianças autistas chegando aos
nossos lares hoje, neste momento. Vamos acolhê-los, aceitá-los, amá-los,
protegê-los e educá-los como educaríamos qualquer filho ou vamos repetir a
mesma história, no mesmo túnel, com as mesmas “verdades” de uma atarantada
ciência?
Como a sociedade pode ver nossos filhos com
naturalidade, se nós, os pais, fazemos questão diuturna de mostrar que eles são
diferentes, os caras estranhos que fazem coisas estranhas e, por isso mesmo,
têm que ter tratamentos diferenciados em qualquer lugar que frequentem? Você se
lembra de Rain Man? Um menino pequeno au...au...au...enfim, aquilo, que foi
internado pelo pai numa clínica até que a morte o libertasse porque os médicos
o convenceram de que ele poderia machucar o irmão menor.
Que saída nossas crianças têm? São levados
costumeiramente a um psiquiatra, portanto só pode ser doente mental; enquanto
os amigos e irmãos assistem o desenho, ele visita a psicóloga, que vai arrancar
dele aqueles gestos estranhos, portanto ele é um cara estranho; é o único da
classe que tem provas diferentes em horários diferentes e que tem uma babá só
pra ele, portanto ele é diferente. Não pode lutar contra isso e vencer toda
aquela gente grande.
Crianças são frutos do meio em que vivem. Adultos
são os construtores do meio.
Quando o andarilho chegou à porta da cidade, *Nasrudin
aproveitava a sombra da oliveira. O andarilho cumprimentou-o e perguntou:
-Eu estou mudando de cidade, como é o povo daqui?
-Como é o povo da cidade em que você mora? –
retrucou Nasrudin
-Egoísta, interesseiro, barulhento, cada um só
pensa em si e ninguém ajuda ninguém.
-O povo daqui também é assim, disse Nasrudin.
No dia seguinte, no mesmo local, outro andarilho se
aproximou e fez a mesma pergunta:
-Como é o povo na cidade onde você mora?
-Fraterno, companheiro, acolhedor, como uma grande
família.
-O povo daqui também é assim, completou Nasrudin.
com cursos de extensão de ensino da Matemática e Alfabetização para Autistas,
Dislexia e Transtornos do Aprendizado,
coordena um projeto que considera o autismo como um dom a ser desenvolvido pela criança,
com auxílio da família e da escola.
* Nasrudin, O “Mullah" como ficou famoso, na realidade é um personagem desconhecido, que
muitos dizem ter existido e vivido durante o século 13 na Anatólia. Ele nasceu
no vilarejo de Hortu em Sivrihisar, Eskisehir; depois morou em Aksehir e mais
tarde em Konya, onde por fim morreu. Alguns alegam que ele tenha sido apenas um
personagem mitológico. Entretanto, várias nações do Oriente Próximo, Oriente
Médio e Ásia Central reivindicam o sábio como seu (Afeganistão, Turquia, Irã,
Índia e outros).
Osho dizia;
“nunca eu amei alguém como amei Nasrudin. Ele é um dos homens que aproximou a
religião do riso.”
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