Lê se na tela de um
computador: "Meu nome é Carly Fleischmann e desde que me lembro, sou
diagnosticada com autismo", a digitação é lenta, a ideia não é concluída
sem algumas interrupções, é assim que Carly trava contato com o mundo. Carly é
uma adolescente de Toronto, Canadá, e atravessou uma batalha na vida. Ajudada
pelos pais, ela conseguiu superar a barreira máxima do isolamento humano.
“Quando dizem que sua filha
tem um atraso mental e que, no máximo atingirá o desenvolvimento de uma criança
de seis anos, é como se você levasse um chute no estômago", diz o pai de
Carly. Ela tem uma irmã gêmea que se desenvolvia naturalmente, e aos dois anos,
ficou claro que havia algo de errado. Ela estava imersa no oceano de dados
sensoriais bombardeando seu cérebro constantemente. Apesar dos esforços dos
pais, pagando profissionais, realizando tratamentos, ela continuava
impossibilitada de se comunicar e de ter uma vida normal. O pai de Carly
explica que ela não era capaz de andar, de sentar, e todos doutores
recomendavam: "Você é o pai. Você deve fazer o que julgar necessário para
esta criança".
Eram cerca de 3 ou 4 terapeutas trabalhando 46 horas por semana. Os terapeutas acreditavam que Carly fosse mentalmente retardada, portanto, sem esperanças de algum dia sair daquele estado. Amigos recomendavam que os pais parassem o tratamento, pois os custos eram muito altos. O pai de Carly, no entanto, acreditava que sua criança estava ali, perdida atrás daqueles olhos:
"Eu não poderia desistir da minha filha".
Subitamente aos 11 anos algo marcante aconteceu. Ela caminhou até o computador, colocou as mãos sobre o teclado e digitou lentamente as letras: H U R T - e um pouco depois digitou - H E L P. Hurt, do inglês "Dor", e Help significa "Socorro". Carly nunca havia escrito nada na vida, nem muito menos foi ensinada, no entanto, foi capaz de silenciosamente assimilar conhecimento ao longo dos anos para se comunicar, usando a palavra pela primeira vez, em um momento de necessidade extrema. Em seguida, Carly correu do computador e vomitou no chão. Apesar do susto, ela estava bem. "Inicialmente nós não acreditamos. Conhecendo Carly por 10 anos, é claro que eu estaria cético", disse o pai.
Os terapeutas estavam
ansiosos para ver provas e os pais incentivavam Carly ao máximo para que ela se
comunicasse novamente. O comportamento histérico de Carly permanecia exatamente
como antes e ela se recusava a digitar. Para força-la a digitar, impuseram a
necessidade. Se ela quisesse algo, teria que digitar o pedido. Se ela quisesse
ir a algum lugar, pegar algo, ou que dissessem algo, ela teria que digitar.
Vários meses se passaram e ela percebeu que ao se comunicar, ela tinha poder
sobre o ambiente. E as primeiras coisas que Carly disse aos terapeutas foi "Eu tenho autismo, mas isso não é quem
eu sou. Gaste um tempo para me conhecer antes de me julgar".
A partir dai, como dizem os
pais, Carly "encontrou sua voz" e abriu as portas de sua mente para o
mundo. Ela começou a revelar alguns mistérios por trás do seu comportamento de
balançar os braços violentamente, e de bater a cabeça nas coisas, ou de querer
arrancar as roupas: "Se eu não fizer isso, parece que meu corpo vai
explodir. Se eu pudesse parar eu pararia, mas não tem como desligar. Eu sei o
que é certo e errado, mas é como se eu estivesse travando uma luta contra o meu
cérebro".
"Eu gostaria de ir a
escola, como as outras crianças. Mas sem que me achassem estranha quando eu
começasse a bater na mesa, ou gritar. Eu gostaria de algo que apagasse o
fogo". Carly explica ainda que a sensação em seus braços é como se
estivessem formigando, ou pegando fogo. Respondendo a uma das perguntas que
fizeram a ela, sobre porquê às vezes ela tapa os ouvidos e tapa os olhos, ela
explica que isso serve para ela bloquear a entrada de informações em seu
cérebro. É como se ela não tivesse controle e tivesse que bloquear o exterior
para não ficar sobrecarregada. Ela explica ainda que é muito difícil olhar para
o rosto de uma pessoa. É como se tirasse milhares de fotos simultaneamente com
os olhos, e é muita informação para processar. O cérebro de Carly não possui a
capacidade de catalizar a quantidade imensa de informações para os sentidos, e
consequentemente, ela não pode lidar com a quantidade excessiva de informação
absorvida.
Segundo o pai de Carly, ela
faz questão de dizer, que é uma criança normal, presa em um corpo que a impede
de interagir normalmente com o mundo. O Pai de Carly teve a chance de
finalmente conhecer a filha. A partir do momento em que ela começou a escrever,
se abriu para o mundo. Carly hoje está no twitter e no Facebook.
Ela conversa
com as pessoas e responde dúvidas sobre o autismo. Com ajuda do pai ela
escreveu um livro chamado Carly's Voice (A voz de Carly). Entre os mais
variados comentários que ela recebe sobre o livro, um crítico disse: "A
história de Carly é um triunfo. O autismo falou e um novo dia nasceu".
Assista o curta-metragem
interativo
"Carly's Café", baseado em um trecho do livro,
e vivencie
a experiência de Carly por alguns minutos:
(http://carlyscafe.com/)
que ajudam a elucidar algumas questões do autismo:
Questão 1:
Carly, você pode me
dizer porque meu filho cospe todo o tempo? Ele tem todos os outros tipos de
comportamento também: Bater a cabeça, rolar, balançar os braços, mas o cuspe é
asqueroso e realmente faz com que as pessoas queiram ficar longe dele. Alguma ideia?
Carly: Eu nunca cuspi, quando era
criança. No entanto, eu babava, e sentia como se cuspisse. Hoje eu percebo que
eu nunca soube como engolir a saliva. Eu nunca usei minha boca para falar, e
por isso, nunca usei os músculos da boca. Quando você tem saliva presa na sua
boca, existem poucas maneiras de se livrar do desconforto. Tente dar a ele
alguns doces por duas semanas. Isso vai fortalecer os músculos e ensina-lo a
engolir a saliva.
Questão 2:
Meu garoto de quatro
anos grita no carro toda vez que o carro para. Ele fica bem, desde que o carro
mantenha-se em movimento. Mas uma vez que parou, ele começa a gritar. É uma
mania incontrolável.
Carly: Eu adoro longos passeios
de carro. O carro em movimento, e o visual passando rapidamente permite que
você bloqueie outros impulsos sensoriais e foque em apenas um. Meu conselho é
que você coloque um DVD no carro com cenário em movimento.
Questão 3:
Você alguma vez já
gritou sem razão nenhuma? Mesmo com o semblante feliz, e tudo calmo e relaxado,
mas você apenas começa a gritar? Minha filha às vezes faz isso e eu estou
tentando entender o porquê.
Carly: Ela está filtrando o áudio e quebrando os sons, ruídos e conversações através do dia. Além de gritar, ela
poderá chorar, rir alto e até demonstrar raiva. É a nossa reação por finalmente
entendermos algo que foi dito há alguns minutos, alguns dias ou alguns meses.
Está tudo ok com ela.
Questão 4:
Como eu faço com que
um adolescente pare com movimentos repetitivos na classe? Ele diz que os
professores são chatos e que é muito mais divertido na cabeça dele. Eu sei que
é, mas ele está perdendo todas as instruções e leituras. Eu estou sempre
redirecionando ele, mas ele está perdendo tanto. Me ajude.
Carly: Ok. Preciso limpar uma má
interpretação sobre o autismo. Se uma criança está fazendo movimentos
repetitivos, não quer dizer que ele ou ela não esteja escutando. De fato, ela
escuta melhor se ela estiver fazendo esses movimentos. Eu estou estudando e
ainda faço movimentos na classe. Eu tento ser discreta, como se estivesse
enrolando um pequeno pedaço de papel nos meus dedos. Todos fazem movimentos
repetitivos. Pense nos desenhos que você faz quando está no telefone, ou
enrolando a ponta dos cabelos, ou enroscando o lápis entre os dedos. Isso é um
"stim" (uma movimentação repetitiva). Não há nada de errado com isso,
mas às vezes é melhor tentar ser discreto.
*GUSTAVO SERRATE
Jornalista e cineasta independente de Brasília. Interesses
transitando pelo cinema, quadrinhos, fotografia, video making, motion design e
toda forma de cultura independente ou marginalizada.
30.12.2012
PONTO CEGO
incubador de
pensamentos
http://lounge.obviousmag.org/ponto_cego/2012/12/como-seria-estar-por-tras-dos-olhos-de-um-autista.html
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