O espectro autista, como o próprio nome sugere, é
muito heterogêneo. Possivelmente múltiplos subtipos e etiologias existem, o que
torna difícil seu estudo. A alta prevalência do autismo na sociedade (1 a cada
88 pessoas, segundo estudos dos EUA), tem estimulado a pesquisa científica para
entender as causas do autismo e como combatê-lo. Alguns estudos haviam
previamente implicado o sistema imunológico materno com o quadro clinico de
algumas formas de autismo.
Decididos a investigar essa relação mais a fundo,
um grupo do centro de excelência de estudos para o autismo da Universidade da
Califórnia, conhecido como Instituto M.I.N.D., detectou a presença de
anticorpos maternos tipo IgG com reatividade a duas proteínas do cérebro fetal
em 12% das mães de crianças autistas. Como muitos outros estudos em autismo, a
amostra inicial fora pequena, deixando dúvidas se realmente existiria algo
assim. Além disso, a identidade dessas proteínas fetais ainda é um mistério.
Afinal, com o que realmente os anticorpos maternos estavam interagindo no
cérebro do feto e qual seria seu mecanismo de ação?
Durante a gravidez, as mulheres normalmente passam
seus anticorpos para o feto, permitindo que esses nasçam com anticorpos que os
defendam de eventuais infecções até que o próprio sistema imune da criança
esteja maduro. É uma mordomia evolutiva adquirida milhares de anos atrás por
nossos antepassados. A teoria por trás da descoberta do grupo M.I.N.D. é que
esses anticorpos IgG maternos específicos do autismo também cruzem a placenta durante
a gravidez e afetem o desenvolvimento do cérebro de forma indireta e não
intencional. Um tiro pela culatra dessa vantagem evolutiva.
Em maio deste ano, o mesmo grupo de pesquisa
validou os achados iniciais, replicando o estudo num grupo maior de mães de
autistas. Além disso, observaram que os autistas nascidos das mães com altos
níveis desses anticorpos tinham a tendência a ter a circunferência da cabeça
bem maior do que crianças típicas (controles) da mesma faixa etária. Vale
lembrar que o cérebro maior é uma característica clínica de 20 a 30% das
crianças autistas.
Agora em julho, o grupo publicou mais um artigo,
dessa vez com testes funcionais em macacos. Os anticorpos IgG maternos foram
purificados de mães com crianças autistas e mães de crianças típicas e
administrados em dois grupos independentes com oito macacos fêmeas cada,
durante o primeiro e segundo trimestre de gravidez. Um terceiro grupo não
recebeu anticorpo algum. O cérebro e o comportamento da prole foi analisada por
dois anos após o nascimento. Diferenças no comportamento dos macacos que
nasceram de fêmeas inoculadas com anticorpos de mães de autistas apareceram
desde cedo. Esses animais mostravam comportamento social inapropriado quando
comparado com os outros dois grupos controle (parâmetros analisados incluíram
contato/proximidade com a mãe e contato com indivíduos estranhos).
Além disso, animais juvenis mostraram movimentos
estereotipados e superatividade. A ressonância magnética revelou que os
indivíduos do sexo masculino nascidos do grupo afetado, tinham um cérebro
significativamente maior comparado com os controles. A diferença maior parece
estar relacionada com a massa branca, com diferenças mais pronunciadas no
córtex frontal (região relacionada ao comportamento social em primatas). Vale
lembrar que estudos anteriores, usando a mesma estratégia cientifica mas em
camundongos, também revelou que os anticorpos derivados desses 12% de mães com
crianças autistas causaram alterações comportamentais.
A ideia de que uma parte, ou um subtipo, do autismo
seja causado por uma reação inflamatória que comece no útero materno é antiga.
Tornou-se especialmente atraente com a observação de que nos últimos 60 anos, a
frequência de doenças imunológicas tem aumentado consideravelmente. Correlações
de autismo com outras condições inflamatórias durante a gravidez, como doenças
autoimunes, alergias, asma ou artrite, são comuns mas difíceis de se comprovar
causalidade. Talvez isso faça sentido sob uma perspectiva evolucionária – é a
teoria da super-higiene moderna. Populações humanas vivendo em condições
semelhante a de nosso ancestrais (cheias de micróbios e parasitas) não
apresentam problemas imunológicos tão frequentes. Dados ainda incertos sugere
que o mesmo aconteceria com autismo. Porém existem poucos estudos
epidemiológicos em populações rurais, por exemplo.
Conforme essas teorias são comprovadas ou
rejeitadas pela ciência, iremos aprender o porquê essa população de mães de
autistas estariam desenvolvendo anticorpos contra proteínas fetais. Além disso,
identificar os alvos desses anticorpos pode levar anos de estudo. O grupo
M.I.N.D. tem publicado sobre isso. Dos 8 alvos já identificados, apenas uma das
proteínas fora previamente relacionada com o desenvolvimento de neurônios no
cérebro humano. Outro antígeno, conhecido como LDH já foi associado ao
metabolismo celular mas nunca ao desenvolvimento neural. Por outro lado,
sabemos que o LDH aumenta quando exposto a toxinas, como solventes industriais,
por exemplo. Isso sugeriria um fator ambiental envolvido nesse complexo
mecanismo.
Tudo isso ainda é muito recente e requer mais
estudos, inclusive da interação entre esses fatores e não apenas seu impacto
individual. Infelizmente a ciência caminha a passos lentos. O autismo tem
influenciado como a ciência é feita nos EUA. A imagem do cientista trabalhando
sozinho numa única teoria provavelmente não vai funcionar para o autismo. É
preciso colaboração de disciplinas diferentes e uma nova perspectiva
cientifica. A contrapartida é justamente a criação de centros de excelência
para estudos do autismo, como o que existe no instituto M.I.N.D. Só a
Califórnia tem 3 desses centros, o que indica o quão sério esse estado
americano considera o problema, estimulados por uma conta de US$ 137 bilhões
aos cofres públicos americanos todo ano.
Crédito da foto: Reprodução/TV Tem
Fonte:ESPIRAL - Alysson Muotri – G1.
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