domingo, 1 de março de 2015

Ética e Clínica no Autismo Infantil

“A queda dos ideais fez com que cada vez mais os resultados científicos passassem a ser usados como argumento de autoridade. Contudo, nem tudo pode ser mensurável, nem tudo pode ser convertido em evidência.”
Marcelo Veras
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Após o nascimento o sistema neurológico do bebê ainda está em formação.  A percepção e reação aos estímulos externos ocorrem sem que tenha consciência de si próprio, ou seja, ainda não se reconhece como o sujeito de suas ações e sensações. No entanto, antes de nascer o filho já apresenta uma existência, quando é nomeado no desejo dos pais, ocupando um lugar no discurso familiar.
O nascimento em si é uma crise primordial que se apresenta ao psiquismo, onde se instala a marca de uma relação biológica interrompida. 
A placenta  como uma parte de si que perde ao nascer, assim como o seio materno em sua função de corte, simbolizam o objeto perdido, instauram um vazio, um buraco a ser preenchido de um objeto jamais reencontrado e sempre substituído. Jacques Lacan fala de um reencontro com o signo de uma repetição impossível, como a busca incessante no Outro do que falta em nós mesmos.
De acordo com Sigmund Freud, ocorre uma perda da libido que induz o sujeito a buscar fora de si mesmo uma completude. Podemos pensar no mal estar da civilização quando diz que o prazer que se busca nunca será completo, pois sempre faltará algo. Isto nos remete ao nosso mundo contemporâneo com a ilusão do corpo/imagem perfeita ou da tal “felicidade”, ofertada pelo mercado, mas nunca alcançada.
A metáfora do espelho é vital na constituição do sujeito, num circuito pulsional onde a imagem do corpo vai sendo construída nas trocas corporais, gestos e na voz que o adulto vai recobrindo de sentido. O desamparo de um recém-nascido para além do orgânico é fundamentalmente um desamparo simbólico, quando começa a habitar marcas, traços e caminhos oferecidos pelo adulto em busca de satisfação e reconhecimento. Assim vai se introduzindo no mundo, constituindo sua subjetividade inicialmente através do Outro primordial materno e, posteriormente,  na interdição paterna com sua entrada no campo simbólico e na linguagem.
Ocorre que no autismo infantil este processo de constituição do psiquismo, nos primeiros anos de vida, se encontra bloqueado numa blindagem que não torna possível a conexão e relação com o desejo do Outro, defendendo-se da linguagem e do mundo.  É como se não houvesse objeto perdido, encontra-se restrito ao organismo biológico, com seu corpo constituído apenas como uma superfície refratária a trocas, sem percepção de si e impossibilitado de constituir um corpo pulsional.
Além do corpo físico há uma corporeidade pulsional, um circuito de força que possibilita a construção da imagem corporal que a criança autista não consegue alcançar. Há uma força que não se deixa apreender entre o corpo e o psiquismo e que precisa representar-se encontrando uma expressão simbólica, caso contrário vai se repetir, sem espaços perdidos ou bordas a serem inscritas.
Há uma recusa do Outro, que é sentido como invasivo e ameaçador. Recusa do olhar, do alimento, do corpo e principalmente da voz como uma trava em todos os circuitos pulsionais, numa defesa incessante. Seus atos sem sentido diminuem sua agitação e angústia. Em sua relação com os objetos não aparece o brincar, mas um manejo de encher e esvaziar que se repete de forma compulsiva.                                              O mutismo não se relaciona a uma incapacidade fisiológica ou a um déficit, mas a uma impossibilidade de enunciação. A criança apresenta-se como objeto de cuidados, fracassando em sua enunciação e não surgindo como sujeito do inconsciente.
A causa é desconhecida e o aumento de sua incidência na atualidade talvez possa relacionar-se às mudanças na subjetividade contemporânea. Os aspectos neurológicos apontados pela neurociência permanecem apenas como uma possibilidade não demonstrada, a indústria farmacêutica aparece como solução imediata e as políticas públicas reabilitadoras como única intervenção, restringindo a abordagem interdisciplinar.
Com o DSM-5 (2013), o espectro autista se transforma em um transtorno do neuro-desenvolvimento, que prioriza a adaptação cognitiva em detrimento da complexidade psíquica e apaga o sujeito a ser trabalhado subjetivamente, visando à adequação do comportamento. O efeito é a patologização e a medicalização crescente da infância e tratamentos adaptativos que apontam déficits, com uma abordagem externa à criança, onde suas produções subjetivas e singularidade não teriam espaço para mostrar-se e desenvolver-se.
Penso que o tratamento com crianças autistas deva partir mesmo destas produções enigmáticas, sem sentido, repetitivas, e a partir daí oferecer um espaço e tempo possíveis para que se dê a possibilidade de uma construção psíquica infantil, que por alguma razão não se constituiu.
É uma aposta ética na possibilidade do surgimento do sujeito, em uma prática clínica que dê condições à criança de poder encontrar saídas para este estado e gerir sua vida, com sua forma particular de inserção e relação no mundo. Há um sujeito a ser escutado e reconhecido em seu modo singular de funcionamento, alguém a ser trabalhado psiquicamente.
J. C. Maleval cita em Étonnantes mystifications de la psychothérapie autoritaire: “(...) Se insistem nas coisas que vocês consideram normais, encontrarão frustração, decepção, ressentimento, inclusive raiva e ódio. Se se aproximam respeitosamente, sem preconceitos e abertos a aprender coisas novas, encontrarão um mundo que jamais imaginaram”.

Ana Lucia Esteves
Psicóloga/Psicanalista
São Paulo, São Paulo, Brasil
Pós-Graduação/Especialização pela Universidade de Nac. de Córdoba - Argentina.
Formação continuada pelo Clin-A (Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade), com participação em Seminário clínico.
Elaboração do projeto: "Saúde Mental do trabalhador com deficiência mental". 
Psicóloga Clínica do Centro de Desenvolvimento Humano - CDH/AME .

analuesteves@hotmail.com

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