“A queda dos ideais fez com que cada vez mais os
resultados científicos passassem a ser usados como argumento de autoridade.
Contudo, nem tudo pode ser mensurável, nem tudo pode ser convertido em
evidência.”
Marcelo Veras
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Após o nascimento o sistema neurológico do bebê
ainda está em formação. A percepção e
reação aos estímulos externos ocorrem sem que tenha consciência de si próprio,
ou seja, ainda não se reconhece como o sujeito de suas ações e sensações. No
entanto, antes de nascer o filho já apresenta uma existência, quando é nomeado
no desejo dos pais, ocupando um lugar no discurso familiar.
O nascimento em si é uma crise primordial que se
apresenta ao psiquismo, onde se instala a marca de uma relação biológica
interrompida.
A placenta como uma parte
de si que perde ao nascer, assim como o seio materno em sua função de corte,
simbolizam o objeto perdido, instauram um vazio, um buraco a ser preenchido de
um objeto jamais reencontrado e sempre substituído. Jacques Lacan fala de um
reencontro com o signo de uma repetição impossível, como a busca incessante no
Outro do que falta em nós mesmos.
De acordo com Sigmund Freud, ocorre uma perda da
libido que induz o sujeito a buscar fora de si mesmo uma completude. Podemos
pensar no mal estar da civilização quando diz que o prazer que se busca nunca
será completo, pois sempre faltará algo. Isto nos remete ao nosso mundo
contemporâneo com a ilusão do corpo/imagem perfeita ou da tal “felicidade”,
ofertada pelo mercado, mas nunca alcançada.
A metáfora do espelho é vital na constituição do
sujeito, num circuito pulsional onde a imagem do corpo vai sendo construída nas
trocas corporais, gestos e na voz que o adulto vai recobrindo de sentido. O
desamparo de um recém-nascido para além do orgânico é fundamentalmente um
desamparo simbólico, quando começa a habitar marcas, traços e caminhos
oferecidos pelo adulto em busca de satisfação e reconhecimento. Assim vai se
introduzindo no mundo, constituindo sua subjetividade inicialmente através do
Outro primordial materno e, posteriormente,
na interdição paterna com sua entrada no campo simbólico e na linguagem.
Ocorre que no autismo infantil este processo de
constituição do psiquismo, nos primeiros anos de vida, se encontra bloqueado
numa blindagem que não torna possível a conexão e relação com o desejo do
Outro, defendendo-se da linguagem e do mundo.
É como se não houvesse objeto perdido, encontra-se restrito ao organismo
biológico, com seu corpo constituído apenas como uma superfície refratária a
trocas, sem percepção de si e impossibilitado de constituir um corpo pulsional.
Além do corpo físico há uma corporeidade pulsional,
um circuito de força que possibilita a construção da imagem corporal que a
criança autista não consegue alcançar. Há uma força que não se deixa apreender
entre o corpo e o psiquismo e que precisa representar-se encontrando uma
expressão simbólica, caso contrário vai se repetir, sem espaços perdidos ou
bordas a serem inscritas.
Há uma recusa do Outro, que é sentido como invasivo
e ameaçador. Recusa do olhar, do alimento, do corpo e principalmente da voz
como uma trava em todos os circuitos pulsionais, numa defesa incessante. Seus
atos sem sentido diminuem sua agitação e angústia. Em sua relação com os
objetos não aparece o brincar, mas um manejo de encher e esvaziar que se repete
de forma compulsiva. O mutismo não se relaciona a uma incapacidade fisiológica ou a um
déficit, mas a uma impossibilidade de enunciação. A criança apresenta-se como
objeto de cuidados, fracassando em sua enunciação e não surgindo como sujeito
do inconsciente.
A causa é desconhecida e o aumento de sua
incidência na atualidade talvez possa relacionar-se às mudanças na
subjetividade contemporânea. Os aspectos neurológicos apontados pela
neurociência permanecem apenas como uma possibilidade não demonstrada, a
indústria farmacêutica aparece como solução imediata e as políticas públicas
reabilitadoras como única intervenção, restringindo a abordagem
interdisciplinar.
Com o DSM-5 (2013), o espectro autista se
transforma em um transtorno do neuro-desenvolvimento, que prioriza a adaptação
cognitiva em detrimento da complexidade psíquica e apaga o sujeito a ser
trabalhado subjetivamente, visando à adequação do comportamento. O efeito é a
patologização e a medicalização crescente da infância e tratamentos adaptativos
que apontam déficits, com uma abordagem externa à criança, onde suas produções
subjetivas e singularidade não teriam espaço para mostrar-se e desenvolver-se.
Penso que o tratamento com crianças autistas deva
partir mesmo destas produções enigmáticas, sem sentido, repetitivas, e a partir
daí oferecer um espaço e tempo possíveis para que se dê a possibilidade de uma
construção psíquica infantil, que por alguma razão não se constituiu.
É uma aposta ética na possibilidade do surgimento
do sujeito, em uma prática clínica que dê condições à criança de poder
encontrar saídas para este estado e gerir sua vida, com sua forma particular de
inserção e relação no mundo. Há um sujeito a ser escutado e reconhecido em seu
modo singular de funcionamento, alguém a ser trabalhado psiquicamente.
J. C. Maleval cita em Étonnantes mystifications de
la psychothérapie autoritaire: “(...) Se insistem nas coisas que vocês
consideram normais, encontrarão frustração, decepção, ressentimento, inclusive
raiva e ódio. Se se aproximam respeitosamente, sem preconceitos e abertos a
aprender coisas novas, encontrarão um mundo que jamais imaginaram”.
Ana Lucia
Esteves
Psicóloga/Psicanalista
São Paulo,
São Paulo, Brasil
Pós-Graduação/Especialização
pela Universidade de Nac. de Córdoba - Argentina.
Formação
continuada pelo Clin-A (Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade), com
participação em Seminário clínico.
Elaboração
do projeto: "Saúde Mental do trabalhador com deficiência mental".
Psicóloga Clínica do Centro de Desenvolvimento Humano - CDH/AME .
analuesteves@hotmail.com
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