NÃO
Direito à felicidade
MARA GABRILLI E ROMÁRIO
Quem
disse que somente pessoas sem deficiência intelectual têm condições de escolher
seus parceiros?
Se
tal prerrogativa correspondesse à realidade, divórcios entre pessoas sem
deficiência não chegariam a índices tão altos. Índices que, aliás, têm batido
recordes no país, de acordo com o IBGE.
Casados
há nove anos, Rita Pokk e Ariel Goldenberg não fazem parte dessa estatística.
Atores com síndrome de Down do filme "Colegas", eles são prova de que
precisamos rever nossa legislação, que insiste em impor barreiras para que
pessoas com deficiência intelectual, por conta própria, casem-se.
Arthur
Dini Grassi Netto e Ilka Farrath Fornaziero conhecem bem essas dificuldades.
Também jovens com a síndrome de Down, os dois lutaram por um ano para vencer
impedimentos legais e conseguirem, enfim, concretizar seu matrimônio.
Assim
como eles, muitos casais são impedidos pela Justiça de simplesmente exercer seu
direito civil.
Tolher
uma pessoa de seu direito de amar é destituí-la da condição humana. O direito
de manifestar afeto é legitimo, não pode ser ignorado.
No
Brasil, o exercício do direito à afetividade, ao voto, à sexualidade e outros
são frequentemente negados às pessoas com deficiência intelectual em função de
um processo que se tornou quase mecânico: a interdição judicial.
Embora
o Código Civil não seja claro ao tratar a questão, é prática recorrente atribuir
ao curador de uma pessoa com deficiência intelectual todas as decisões de sua
vida civil e, muitas vezes, atos de natureza não civil. Não se leva em
consideração a real capacidade e vontade do curatelado, que deveria ser
assistido em vez de representado.
O
Código Civil tem incongruências com relação à Convenção da ONU sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário. Ela
garante o reconhecimento de que as pessoas com deficiência têm capacidade
legal, em igualdade de condições com as demais pessoas, em todos os aspectos.
Para
propor mudanças nesse cenário, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (projeto de
lei nº 7.699/2006) traz alterações ao Código Civil com vistas à adequação do
procedimento judicial de interdição. A ideia é que pessoas com deficiência
intelectual não precisem mais da autorização da Justiça para colocar em prática
o direito ao matrimônio, mesmo sob curatela.
O
texto do estatuto, aberto até 5 de outubro para consulta pública no
edemocracia.camara.gov.br, prevê ainda o direito de votar e ser votado e à
saúde sexual e reprodutiva, restringindo ao curador o envolvimento em questões
de cunho patrimonial. O objetivo é garantir o protagonismo do interditando, sem
impedir, no entanto, quando necessário, a interferência da figura do curador,
que deve respeitar o potencial e a autonomia do curatelado.
Os
direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência intelectual são os
mesmos de qualquer outro cidadão, bem como os direitos civis e políticos.
Privá-las de exercê-los só fortalece o preconceito da sociedade sobre a
deficiência intelectual, que entre todas as deficiências é a mais discriminada.
Hoje
já assistimos, ainda que de forma incipiente, à inclusão da pessoa com
deficiência intelectual. Pessoas com síndrome de Down, que há poucas décadas
tinham a expectativa de vida muito curta, agora lutam para formalizar sua
maturidade, exercendo o direito ao matrimônio. E o fazem de maneira consciente,
sem perder a espontaneidade e a candura, tão características de seu jeito de
encarar a vida. Vetá-las de sua autonomia, decidindo por elas seu futuro, além
de ir contra qualquer diretriz de uma nação inclusiva, cria uma barreira que as
impede de buscar a própria felicidade.
MARA GABRILLI, 45, é
deputada federal (PSDB-SP) e ROMÁRIO, 47, é deputado federal (sem partido-RJ)
FONTE:
TENDÊNCIAS/DEBATES –
Folha de S. Paulo
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/09/1345323-mara-gabrilli-e-romario-direito-a-felicidade.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/09/1345323-mara-gabrilli-e-romario-direito-a-felicidade.shtml
Não basta querer
MARIA ELISA GRANCHI FONSECA
Desde
2002, a Associação Americana de Retardo Mental propõe a compreensão de
deficiência mental para além do mero ser ou não ser intelectualmente
"bom" ou "ruim".
É
preciso considerar os sistemas de apoio com que a pessoa com deficiência
intelectual (DI) precisará contar ao longo da vida. Além das habilidades
intelectuais, há que se considerar a saúde física do indivíduo, seu desempenho
social e sua capacidade de adaptação às práticas da vida diária, e tudo isso
depende da severidade de cada caso.
Limitações
de adaptação prejudicam tanto a convivência quanto a capacidade da pessoa em
responder ao que o ambiente espera dela em sua residência, na escola, no
trabalho e na comunidade.
Pense,
então, na situação conjugal, que advém do casamento. Uma situação que envolve
rotina doméstica, contas a pagar, faxina a fazer, comida a preparar e
"amor para dar", o que, aliás, não é a questão. Aspectos emocionais,
direito ao amor, apaixonar-se, envolver-se intimamente, tudo isso é da condição
humana. Independentemente da DI. Independentemente de ser ou não DF, PC, TDAH,
DA e demais siglas.
A
concepção de matrimônio e casamento costuma ser romanceada, como um direito a
ser garantido. Mas não se pode deixar de considerar os efeitos desse contrato
sobre a vida de quem os leva.
Não
basta querer casar para casar. Um par com recursos intelectuais e funcionais
limitados, a ponto de precisarem de apoio pervasivo e supervisão direta, terão
consciência plena de estarem em um lar, e não somente em uma casa mobiliada? A
presença de alguém mediando o casamento faz do mesmo matrimônio?
Não
que neguemos a essas pessoas o direito à família e ao casamento. Mas não
podemos negar, outrossim, que essas mesmas pessoas sejam passíveis de recursos
linguísticos limitados, tenham dificuldade no trato com o dinheiro, problemas
com autonomia e independência, falhas nas competências sociais, na observância
de regras e leis, na credulidade.
Podem
também ter dificuldades para evitar a vitimização, problemas com deslocamento,
higiene, vestuário, manejo de medicamentos, habilidades ocupacionais e com a
segurança --situações de difícil enfrentamento quanto mais severa for a
deficiência intelectual.
Tudo
isso poderá fazer com que as competências necessárias para a vida a dois passem
a ser motivos para a vida a três, ou quatro, ou cinco. A presença constante de
alguém pode vir a ser urgente e até critério para a manutenção da independência
e qualidade de vida do casal.
Há
dúvidas quanto a se o casamento entre duas pessoas com DI vai se caracterizar
como casamento no sentido pleno do termo. Ou ainda como "viver
junto", "estar perto de", tanto faz. Isso está relacionado ao
grau da DI. Quanto melhor a pessoa funcionar no ambiente, menos problemas de
adaptação terá no convívio com seu cônjuge, em seu lar.
Não
parece ter havido discussão sobre casamento entre pessoas com DI leve. Isso
pelo fato de os quadros leves estarem próximos dos neurotípicos, que se
confundem na multidão. A discussão que se se observa considera indivíduos com
quadros mais comprometidos, o que provoca um questionamento: de onde partiu a
ideia? Quem resolveu casar com quem?
Se
o caso é mais severo, o rebaixamento intelectual deixa o indivíduo menos
suscetível a fantasias e à tentação de fazer planos. Será que alguém não
resolveu por ele que, agora, além de todos os direitos iguais, também é preciso
exigir o direito civil de se casar? Não, deficientes intelectuais não devem se
casar sem autorização antes que se avalie a severidade de cada caso.
FONTE:
TENDÊNCIAS/DEBATES –
Folha de S. Paulo
MARIA ELISA GRANCHI
FONSECA, 42, psicóloga, é supervisora de atendimentos a autistas da Apae
(Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais)
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