sexta-feira, 8 de agosto de 2014

LIVRO: A batalha do autismo – Da clínica à política

ABAIXO DA CRÍTICA

Resenha do livro ‘A batalha do autismo’, publicada na CH (Ciência Hoje), aponta interesses explícitos do texto, pouco conteúdo de base científica e desatualização de dados sobre o transtorno.
Por: Francisco Assumpção

Tema de livro lançado no Brasil, o chamado espectro do autismo, que reúne vários transtornos do desenvolvimento, atinge 70 milhões, segundo a Organização Mundial da Saúde.
 (foto: Belovodchenko Anton/ Freeimages)
Escrito pelo psicanalista francês Éric Laurent, este livro se propõe a oferecer um painel dos debates referentes ao autismo, bem como a desmistificar a burocracia sanitária, possibilitando perspectivas ao tratamento das pessoas autistas. Sua leitura é, a princípio, extremamente interessante, como o é a leitura de qualquer panfleto, considerado pelo dicionário Aurélio como um escrito satírico ou violento, geralmente político. Assim, já como ponto de partida, não se pode considerá-lo um livro científico. Apesar disso, podemos dividi-lo em duas partes bastante distintas.
O  livro se propõe a oferecer um painel dos debates referentes ao autismo
Uma delas, composta pelo prólogo, pelos três capítulos da parte dois, pela conclusão e pela própria introdução ao leitor brasileiro, consiste em um libelo que, no país, tem um endereço específico: a determinação da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, exigindo o diagnóstico a partir de avaliação neurológica e/ou psiquiátrica, e atendimento multiprofissional, a partir de abordagens em linguagem pragmática e em técnicas cognitivo-comportamentais, fatos tidos como inadmissíveis por toda uma gama de profissionais, embora tenham aceitação internacional.
Trata-se assim de mera discussão e defesa sobre mercado de trabalho, ainda que tente se justificar sob a égide de uma visão democrática e (como era de se esperar nesta pós-modernidade) politicamente correta.
Para tal justificativa, alguns argumentos, que devem ser pensados, são utilizados. Citando o livro Imposturas intelectuais, de Alan Sokal e Jean Bricmont (Record, 1991), podemos observar uma confusão entre o sentido corriqueiro e o técnico das palavras, bem como em ambiguidades que são frequentes em todo o texto.
Capa do livro Autismo
Um bom exemplo encontra-se logo ao se iniciar a segunda parte, quando se destaca que a medicina baseada em evidências “recusa as coortes de caso com seu acompanhamento”, esquecendo-se que estudos de coorte, muito utilizados em epidemiologia, correspondem a “se partir de um fator de exposição (causa) para se descrever a incidência e analisar associações entre causas e doenças. Fornece assim excelentes informações sobre as causas de uma doença, embora apresente alto custo e demande longo período de tempo, podendo ser confundido com estudos de caso-controle”.
O que realmente não se diz é que estudos de coorte não correspondem a meros estudos de caso, realizados de maneira descritiva e anedótica, como muitos são descritos no decorrer da obra. Da mesma maneira, inúmeras outras afirmações são feitas desconsiderando o significado técnico, o que ocasiona erros de interpretação e, principalmente, afeta a credibilidade da obra.
A segunda parte, um pouco mais séria, trata a questão do autismo sob uma ótica extremamente específica, lacaniana, que, no dizer de Catherine Meyer, em O livro negro da psicanálise (Civilização Brasileira, 2011), reflete a décalage [descompasso] entre a hegemonia da psicanálise na França e seu declínio no restante do mundo, frisando que somente Brasil e Argentina acompanham esse movimento conservador.
Teorias especulativas
Considerando essa parte teórica, as mesmas críticas me parecem procedentes, uma vez que teorias especulativas são apresentadas como ciência estabelecida – mesmo se não considerarmos as que Sokal e Bricmont apontam exaustivamente quando se referem à utilização que Jacques Lacan faz de palavras como ‘topologia’ ou ‘toro’, procurando dar uma aparência matemática (enquanto “ciência pesada”) para analogias arbitrárias.
Assim, considerando-se o tema, autismo, antes de lançarmos generalizações teóricas (e, neste caso, a partir de pouquíssimos casos relatados), seria interessante que nos debruçássemos sobre dados empíricos (bastante desvalorizados pelos intelectuais pós-modernos) para checar a procedência de determinadas afirmações.
 Em função dessas breves considerações em ambas as partes do livro, a situação deve ser analisada a partir de dados referentes à eficácia de determinados métodos, exaustivamente estudados, com revisões e experimentos recentes, e não a partir de estudos de casos individuais. Entretanto, estudos controlados e com metodologia replicável e adequada – como os apresentados por Brian A. Boyd et al. no Journal of Autism and Developmental Disorders  – são desconsiderados por esta obra, tanto sob o ponto de vista teórico (que permitiria a reformulação de teorias, fato fundamental para qualquer ciência) quanto sob o ponto de vista prático.
Mulher autista
Os métodos terapêuticos do autismo devem se basear em testes empíricos e 
na análise dos resultados obtidos em diferentes locais e ambientes. 
(foto: guenter m. kirchweger/ Freeimages)
Talvez isso esteja presente porque, sob determinadas condições (e a defesa de mercado é uma delas), o mundo real dificilmente importa (e, neste caso, os indivíduos autistas), embora o objetivo básico a ser buscado deva ser o desenvolvimento de estratégias eficientes para a verificação dos fatos, usando-se para isso bases de dados universalizadas, que permitam a escolha dos melhores e mais eficazes projetos terapêuticos. Principalmente se pensamos em saúde pública, a qual deve maximizar os benefícios para a maior parcela da população atendida, considerando-se os exíguos recursos a ela destinados.
O objetivo básico a ser buscado deve ser o desenvolvimento de estratégias eficientes para a verificação dos fatos, 
usando-se para isso bases de dados universalizadas, 
que permitam a escolha dos melhores e mais eficazes projetos terapêuticos.
Deve-se, portanto, ‘checar’ a eficácia dos métodos terapêuticos propostos não a partir de modelos teóricos, embasados na autoridade de quem fala, mas sim a partir de testes empíricos e da análise dos resultados obtidos em diferentes locais e ambientes.
A nada disso o presente livro se propõe. Resta-nos então lê-lo por aquilo que de fato é: um texto com interesses explícitos, pouco conteúdo de base científica e totalmente desatualizado em relação ao que se pensa sobre autismo, no mundo, hoje.
Para quem ainda não acredita, sugiro a leitura do número de janeiro de 2014 da Child and Adolescent Psychiatric Clinics of North America, que traz artigos recentes e documentados sobre o manuseio agudo dos ‘transtornos do espectro do autismo’. Independentemente da crença ou das falhas (indubitáveis) presentes no DSM 5 (Dicionário de Saúde Mental, da Associação Americana de Psiquiatria), utilizado pela publicação, é, ao menos, uma informação atual e razoavelmente embasada.
FONTE:
Francisco Assumpção
Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo
Publicado em 07/08/2014 | Atualizado em 07/08/2014

http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2014/316/abaixo-da-critica

Um comentário:

Unknown disse...

Para toda psicanalise, Lacaina, Freudiana, deve passar longe da pessoa com autismo, na verdade doutor Assumpção está certo, essa visão psicanalítica, já vêem decaindo em quase todo mundo, pois através de pesquisas sérias, a linha comportamental, onde a busca da melhora da pessoa está nela, e não do Divã do Médico é real e eficaz.