Aquele sorriso torto
TAXI...
“Esse seu é calminho, hein? O nosso, quando tinha
esse tamanho, dava medo.”
E assim começamos a conversar. No trânsito.
Infernal, como todo e qualquer trânsito. Para ir ao centro de Porto Alegre há
muito tempo desisti de ir dirigindo. O caos é tamanho que terceirizar o stress
é uma medida necessária. Isso significa ir de transporte coletivo ou tomar um
táxi.
Levei um susto porque demorei um pouquinho a
entender o assunto da conversa. Com meu filho sentado ao meu lado, logo percebi
que o assunto era ele. Não, não era ele. Era o irmão dele. Do taxista. Um
“downzinho” como o “meu”.
Para quem não está familiarizado com o termo,
“downzinho” é o coletivo/genérico empregado às crianças que nasceram com a
síndrome de Down, principalmente entre familiares. Eu até confesso que mantive
por muito tempo muita relutância em usar o termo. Mas, diante de outros usados
mais ou menos abertamente e claramente depreciativos (ver lista ao final*),
“downzinho” hoje eu considero carinhoso. Não me incomodo mais. Verdade que não.
Unido de repente a essa grande família sindrômica,
despertei do choque inicial da conversa e aproveitei para indagar ao taxista
sobre o downzinho “deles”. É uma curiosidade sem medida essa, como bem sabem
todos os pais e mães. Porque mal tive tempo de perguntar seu nome, não vou usar
nenhum nome aqui e tentar dissipar qualquer referência concreta o quanto antes.
Essa é uma história real e não desejo nem por um instante expor a ninguém.
Então pensei em pedir que ele contasse mais sobre o irmão, mas nem precisou. E
ele então prosseguiu.
O downzinho “deles”, segundo me contou, era incontrolável.
Mordia os colegas. Era medicado para conseguir dormir algumas poucas horas por
noite. Foi expulso das escolas onde tentaram mantê-lo, quase sempre em virtude
do comportamento agressivo. Mesmo na APAE foi difícil mantê-lo na infância. Ele
era considerado “ineducável”. Disseram-lhes que era autista também. Ou
esquizofrênico. A jornada médica foi terrível, por anos a fio. A família gastou
o que não tinha para procurar tratamentos. Mudaram do interior para a capital
para tentar recomeçar a vida, levando pouco mais que a mala podia portar. Mas
foi então que as coisas começaram a mudar, no mais improvável cenário que se
pode imaginar.
Estamos quase chegando ao nosso destino. Estou
levando meu filho ao oftalmologista, para revisar o grau dos óculos e pegar
receita para fazer nova armação. É a terceira do ano. As outras duas foram
perdidas. E sob muita reclamação. O taxista parou o carro e continuou contando.
Não me atrevi a insinuar que era hora de descer, que estávamos quase atrasados.
Era verdade, se o dissesse. Mas queria ouvi-lo mais. E ele, por sua vez, queria
falar mais também.
O “nosso downzinho”, disse ele, “teve de começar a
trabalhar comigo. Vendíamos flores nos cruzamentos. Às vezes na rodoviária. Nos
parques da cidade. Ele era um grande vendedor de flores. Bastava abrir o
sorriso ‘meio torto’ que as mulheres, principalmente, se derretiam. E alguns
homens também. Se houvesse um prêmio de vendedor de flores, ele mereceria um
troféu, de tantas que vendeu.” Isso durou dois anos e esse dinheiro fez com que
a família pudesse se estabelecer. Alugaram uma casa melhor e, embora ele não
quisesse sair das ruas, voltou a estudar. A mãe não aguentava mais sofrer em
saber que ele andava por aí, mesmo que sob a proteção do irmão. Não havia onde
mais acender velas na casa. Isso que era uma casa de três cômodos.
“Na APAE de novo?”, eu perguntei.
Não foi na APAE, mas em outra escola especial, que
o aceitou apesar da idade já mais avançada. Perguntei em que ano foi isso e ele
falou que foi no começo dos anos noventa, mais ou menos na época do impeachment
do presidente Collor. Calculei rápido e concluí que hoje ele deveria estar por
volta dos quarenta anos.
“E a agressividade aquela, onde foi parar?”,
precisei perguntar.
“Logo depois que começou a sair comigo, melhorou muito.”
O que ele precisava era cansar, segundo o irmão. E conversar, mesmo que daquele
jeito embaralhado. E andar mais solto. Quando voltou à escola, a mãe
acompanhava ele todos os dias, mas logo não foi mais preciso. Começou a ter
aulas de judô. E começou a tomar banho sozinho. A cuidar mais de si mesmo. Ele
estava é apaixonado, mas não contava nada. E dali em diante não teve mais um
dia na vida em que não estivesse “enrabichado” com alguém. A mãe e o pai
deixavam. E assim foi que ele voltou a trabalhar e nunca mais pareceu aquele
capeta.
“E hoje, como ele está?”, foi quase minha última
pergunta. A consulta estava atrasando de verdade agora.
Muito melhor que eu, ele foi dizendo. Trabalha numa
farmácia e namora a farmacêutica, que é dona da farmácia. “Sério?”, pergunto.
“Claro, aquilo é um safado de marca maior”. E então ele riu bastante. E eu
também. “Mas ela não é down, claro que não”, ele disse. “E como foi que ele
conquistou a moça?”, perguntei já conferindo o troco. Ele demorou um pouco
antes de responder, em meio a um tipo de suspiro, talvez..
“Eu acho que foi aquele sorriso torto..”
Então o tempo fechou e choveu muito, embora nossas
roupas na rua, depois, continuassem secas e enxutas.. Não consegui perguntar
mais nada. Fomos saindo. Eu e o meu menino. Ele, o taxista, também não olhou
mais pelo retrovisor, mas teve tempo de desejar boa sorte. E disse para
carregar na dose de paciência. E que, no fim, valia a pena. Que tudo iria dar
certo.
Só me arrependo mesmo de não ter ficado com o
endereço da farmácia para um dia desses ir lá conhecer o “ineducável”. É que
educar dá trabalho mesmo, mas compensa.
Postado por Lucio
http://morphopolis.wordpress.com/
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