Na última semana, por meio das redes sociais, tomei
conhecimento de um apanhado de ideias sobre o “politicamente correto” e a
“liberdade de expressão” obtido de um blog mantido pelo O Globo.
A autora do
blog, Silvia Pilz, que se apresenta como jornalista, cronista e alguém que “diz
o que pensa”, teceu comentários a respeito de vários grupos de pessoas
(minorias, para ser mais preciso) e do já bem conhecido “politicamente correto”
que, segundo ela, tem obstado seu direito de “dizer o que pensa”, resumo
improvável do significado total do direito à liberdade de expressão, instituto
jurídico preconizado na Constituição Federal de 1988 e desde lá em vigor.
Silvia conseguiu reunir, em um texto apenas,
diversas situações envolvendo minorias, como pessoas com síndrome de Down,
anões e negros. Ela também falou sobre crianças em processo de adoção, no que
deveria ser um post, talvez, de humor. O texto pode ser lido aqui.
Anteriormente ela já havia escrito sobre crianças com síndrome de Down e
relatava ter encontrado um “enxame” de crianças em viagem à Barcelona, o que
teria lhe parecido uma espécie de “pesadelo”. Em O Globo, o texto foi editado e
o termo “enxame” substituído por “time”, mas em seu blog pessoal permanece
conforme o original, pelo menos até o momento em que estou digitando isto.
Na internet e na imprensa, algum desconforto
inicial deu vazão a uma onda de revolta em relação às opiniões da autora. O
Dep. Romário Faria, do PSB do RJ, pai de uma menina com síndrome de Down, foi
contundente ao publicar em seu perfil no Facebook que “suas palavras são apenas
tolices de uma pessoa com uma visão de mundo bastante limitada” e que a autora
estaria “fora do tempo”.
Obviamente ninguém conseguiria cercear o direito ao
desconforto individual diante do que quer que seja, pois trata-se de um
sentimento íntimo, cultivado sob condições sempre muito específicas. Cada
indivíduo está absolutamente livre para chocar-se com o que imagina ser
insuportável. E, dentro do estado de direito, está livre também para
manifestar-se quanto a isso, sujeitando-se às contrariedades.
Na jurisprudência recente brasileira, não são
poucos os casos de jornalistas interpelados judicialmente sob vários tipos de
argumentos, como incitação ao preconceito, racismo e apologia à discriminação.
O poder judiciário, via de regra, tem preferido recusar os “delitos de opinião”
e garantido o princípio do contraditório, através do direito de resposta. E o
direito à liberdade de expressão sempre esteve mais relacionado às liberdades
conquistadas após o final da ditadura militar. Apenas mais recentemente tem
sido invocado nesses casos, para o qual a legislação é pétrea, tanto no Brasil
quanto na maioria dos países ocidentais.
O desejo de que o estado puna formalmente a autora
do texto, entretanto, foi aventado por muitas pessoas, mais ou menos
informalmente. O jornalista Luis Nassif, por exemplo, defende a ideia de que o
Ministério Público Federal proponha ação civil pública contra a autora e sua
editora, a Globo, por dano moral coletivo.
É provável que, visitando os perfis pessoais de
pessoas emocionalmente envolvidas com o assunto, medidas ainda mais graves
sejam consideradas respostas razoáveis. É democrático. Não há cerceamento
possível ao desconforto. Li em alguns perfis nas redes sociais que a autora
mereceria morrer, no que pode ser apenas um laivo de ira momentânea quanto
também a expressão de uma intolerância ainda mais grave e violenta. Talvez,
como em muito já se faz, judicializar a questão do preconceito possa resolver
alguma coisa sobre o gesto preconceituoso, mas talvez não mova ele de seu nicho
um milímetro sequer e apenas alimente ainda mais intolerância, em um círculo vicioso
perigoso e indesejável.
É preciso mais reflexão, mesmo que isso seja
custoso, para que não se crie um monstro em substituição ao outro.
Evidentemente, eliminar a expressão de uma ideia não é suficiente para eliminar
a própria ideia e, talvez a ocultando, ela fique ela ainda mais mascarada e
inacessível. Na história da humanidade, sobre outros assuntos, isso já ocorreu
muitas vezes e não se obteve grandes avanços em relação aos direitos humanos,
mesmo que em nome de uma outra ideia mais plausível, defensável ou digna.
Talvez o maior crime de Silvia Pilz seja um que não
possa ser dimensionado juridicamente, porque enraizado no discurso e
manifeste-se na psicologia humana. Ao classificar o coletivo de pessoas com
síndrome de Down como “enxame”, o que ela obtém é a imediata desumanização das
pessoas. Seu estatuto civil e moral estaria reduzido ao universo animal, de
onde não poderiam ser abordadas natural e socialmente. É um pensamento estranho
e igualmente desconfortável, porque a síndrome de Down é uma fatalidade
genética inerente à condição humana, assim como o nanismo ou a cor da pele.
Desde o ataque à redação do Charlie Hebdo, muito se
tem debatido sobre violência e liberdade de expressão. Ora, não é preciso
raciocinar muito para concluir que uma condição inata não pode ser comparada a
uma opção racional adulta, como no caso da religiosidade. Mas não falta quem
tente forçar uma relação sobre a liberdade de expressão, a possível expressão
de um humor intelectualizado e a popularização de ideais preconceituosas,
contra as quais o “politicamente correto” pretende, talvez, ser uma espécie de
remédio. O humorista Rafinha Bastos, na Folha de São Paulo, foi celeremente
buscar guarida nesse guarda chuva destroçado, mas parece ter convencido a
poucos.
Seja como for, fatos assim levam-me a crer cada vez
mais de que realmente quase ninguém mais examina as próprias ideias antes de
exercer o direito a “dizer o que pensa”. Se não examinam sequer as ideias dos
outros e perpetuam farsas com a instantaneidade de um clique, que dirá dar-se
ao trabalho de conferir fontes, refutar hipóteses absurdas, ideias ultrapassadas
e informações sem sentido?
O trágico, neste caso, não reside nos efeitos
finais da livre expressão, porque felizmente a sociedade e as pessoas vêm
livrando-se de estereótipos e estigmas, mas no trânsito abundante de ideias
pobres e ridículas de toda a espécie, incapazes de um mínimo ato de reflexão,
interpretadas fora de qualquer rigor intelectual e sem senso de humor algum
para além de um calcado na ridicularização do ser humano, na distinção social e
no preconceito.
Haverá momento em que pensar-se no que é dito será
mais frequente, felizmente, do que dizer-se o que pensa, embora tudo conspire
pelo contrário. Se a liberdade de expressão é, sem dúvida, condição prévia para
qualquer debate honesto na esfera pública e o humor uma forma peculiar de
elaboração mental, a propagação de ideias sem elaboração nenhuma apenas repete,
como em um eco infinito, a própria pobreza de espírito, que é a tragédia máxima
para o ser humano pensante.
Lúcio Carvalho
* Coordenador-Geral
da Inclusive – Inclusão e Cidadania.
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