É recorrente a conduta ilegal e atentatória
praticada por escolas particulares do Brasil que têm recusado matrícula a
estudantes com deficiência. Essas instituições têm dificuldades em reconhecer
os benefícios da educação inclusiva e continuam presas a um conceito de
deficiência ligado à ideia de incapacidade. Com isso, reforçam a discriminação,
alegando inúmeros motivos sem fundamentos para não receber esses alunos. Muitas
vezes, os estabelecimentos privados de ensino sequer conhecem o educando e suas
potencialidades e imaginam, tão somente, as dificuldades que eles possam ter em
função da deficiência.
A
escola não deveria ser o local de negação de um direito fundamental. Ao
contrário, tem de ser a primeira instituição a dar o exemplo de inclusão,
acolhimento e confiança nas possibilidades de desenvolvimento das pessoas com
deficiência, por mais que os resquícios de um passado excludente e segregador
ainda estejam presentes no pensamento dos sujeitos.
Estabelecimentos particulares são prestadores
de um serviço público por meio de autorização do Estado e estão vinculados ao
regime jurídico-administrativo do país. O ensino é livre à iniciativa privada,
mas esta deve cumprir as normas gerais da educação nacional – como os atos normativos previstos na Constituição
Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), dentre outras legislações, bem como as
portarias de autoridades administrativas competentes (Ministério da Educação, Conselhos
e Secretarias de Educação). Os deveres são comuns a todos – logo, a obrigação
de matricular estudantes com deficiência não cabe somente às escolas públicas,
mas também às particulares.
Como justificativa para a conduta ilegal
de negação de matrícula, as escolas privadas afirmam que são regidas também
pela livre iniciativa, propriedade privada e livre concorrência. Esses
princípios, porém, não devem se sobrepor às normas e regras do sistema
educacional brasileiro. Por essa razão, não se admite que a rede particular não
cumpra as obrigações previstas pela Política Nacional de Educação Inclusiva.
Oferta de
atendimento educacional especializado
O texto constitucional, em seu artigo 208,
estabelece que o Estado deve conceder atendimento educacional especializado
(AEE) a alunos com deficiência, preferencialmente, na rede regular. Mas ainda
há muitos equívocos na compreensão desse serviço. Eugênia Augusta Gonzaga
Fávero, procuradora da República e procuradora regional dos direitos do cidadão
no estado de São Paulo, esclarece na obra Direitos das Pessoas com Deficiência:
Garantia de Igualdade na Diversidade:
“Atendimento
educacional especializado é complemento à escolarização ou educação escolar,
conforme definida no artigo 21 da LDB. Nos termos desse artigo, a educação
escolar compõe-se de: I – educação básica, formada pela educação infantil,
ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior. A Educação Especial
é modalidade de ensino, tratada na LDB em capítulo não compreendido entre aqueles
que cuidam dos níveis de ensino. Como modalidade, o atendimento especializado
perpassa todos os níveis de ensino, mas não se confunde com eles. Se esse
atendimento especializado fosse exatamente o mesmo que escolarização, a
Constituição não teria inserido a sua garantia, além do acesso aos ensinos
infantil, fundamental e médio. Portanto, o atendimento educacional
especializado é complemento e refere-se ao que é necessariamente diferente do
ensino escolar, para melhor atender às especificidades dos alunos com
deficiência, abrangendo, principalmente, instrumentos necessários à eliminação
das barreiras que esses alunos têm para relacionar-se com o ambiente externo.
Exemplo: ensino da Língua Brasileira de Sinais (Libras), do braille, do uso de
recursos de informática, e outras ferramentas e linguagens.”
Assim, se o educando necessitar de
atendimento educacional especializado, a instituição de ensino deve procurar
parcerias ou implementar políticas para atendê-lo. Porém, a falta do AEE, um
serviço complementar à escolarização, jamais poderá impedí-lo de frequentar a
sala de aula comum.
Muitos estabelecimentos privados
alegam que não há como obrigá-los a oferecer o AEE quando não possuem estrutura
física adequada e profissionais habilitados. Nesse caso, fica evidenciado o
desconhecimento quanto ao ordenamento jurídico brasileiro, já que a inclusão de
pessoas com deficiência no sistema de ensino não se restringe ao âmbito da rede
pública. As escolas particulares devem ter acessibilidade arquitetônica,
disponibilizar atendimento educacional especializado e material pedagógico
acessível, entre outros serviços e recursos. É fundamental destacar que, aliás,
uma escola particular só pode ser autorizada a funcionar pelos Conselhos de
Educação quando atende às normas de acessibilidade.
Legislação
inclusiva
O Brasil é signatário de documentos
internacionais, como a Convenção de Guatemala de 1999, ratificada e promulgada
pelo decreto nº 3.956/2001, que proíbe qualquer diferenciação que implique na
exclusão ou restrição de acesso aos direitos fundamentais, e a Convenção das
Pessoas com Deficiência de 2006, que garante a esse público o direito de não
ser excluído do sistema educacional regular.
A legislação brasileira ainda tipificou
como crime a recusa, procrastinação, cancelamento, suspensão ou cessação da
inscrição de estudante em instituição de qualquer nível, etapa ou modalidade de
ensino, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que tem (art.
8º, Lei nº 7.853/89), sujeito a pena de um a quatro anos de reclusão e multa.
Negar a matrícula e a participação de qualquer aluno com deficiência é ferir
princípios arduamente conquistados e, sobretudo, destruir sonhos, negando
dignidade à pessoa humana.
A escola deve enfrentar os desafios das
diferenças para se tornar um local de cooperação, de acolhimento e de
desenvolvimento humano. Alguns educandos necessitam de serviços e recursos de
acessibilidade que atendam a suas necessidades educacionais específicas. Essas
singularidades, no entanto, não podem ser utilizadas como pretexto para se
negar matrícula ou confinar pessoas com deficiência em instituições que as
privem do convívio com os demais estudantes. Mesmo que existam locais com
profissionais especializados, isso não impede nem substitui o direito à
educação escolar comum.
Os estabelecimentos de ensino da iniciativa
privada que recusam a matrícula devem ser orientados a cumprir o que estabelece
a legislação brasileira e as normas internacionais. Em caso de negativa, o
Ministério Público e os Conselhos de Educação podem e devem ser órgãos
articuladores que garantam o direito à educação nas instituições regulares aos
alunos com deficiência. Além disso, os estabelecimentos particulares devem
compreender os princípios e fundamentos da educação inclusiva, reconhecer a
grandeza de uma escola aberta às diferenças e trabalhar em prol de uma educação
que promova valores humanos em oposição a expressões de rejeição a todo aquele
que se opõe ao padrão.
Rosângela
Machado é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e gerente de
Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação de
Florianópolis (SC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário