Pórtico da cidade de Bom Princípio |
Confesso
que já estava cansado, mas nunca perdi a esperança de que um dia o vento
poderia começar a soprar na direção do autista para este conquistar seu lugar
no contexto de ser bem aceito na vida, pelo menos defendido, mesmo que
contrariando regras obrigatórias em favor de todo ser humano, cada vez que me
expresso sobre discriminação e preconceito.
Quando
o padre celebrante excluiu um adolescente autista do sacramento da primeira
comunhão, por julgar que o mesmo não abriria a boca na hora de receber a
hóstia, não pensou que causaria revolta entre os moradores da cidade, e o fato
como diz o ditado gaúcho, “pegou fogo igual capim seco” repercutindo por todos
os meios de comunicação no Brasil, listas de discussão, e redes sociais.
As
variações sobre o mesmo tema das opiniões pessoais atéias, espíritas, católicas,
evangélicas, crentes e filosofais, foram tantas que por pouco o padre causador
da asneira fica de fora da história.
Precisamos considerar que “somos herdeiros dos
próprios atos”. Em cada encarnação adicionamos conquistas ou prejuízos a nossa
contabilidade evolutiva e, em determinados momentos, ao contrairmos débitos
mais sérios, reencarnamos para ressarci-los sob a injunção dolorosa de
fenômenos expiatórios, tais os estados esquizóides e suas manifestações várias,
dentre elas, o autismo.
Tomai
e comei – disse Jesus, e não tomai e olhai. Olhar não é comungar... Disse o
padre para a imprensa na tentativa de se justificar: “Não posso abrir a boca
dele com força e largar um pedacinho da hóstia lá dentro. Tem de ser um ato
livre e espontâneo”, afirmando que o adolescente não estava preparado para
entender o sentido da comunhão, no que foi prontamente defendido pelo bispo da
diocese, apoiando que aquele não era o momento para ministrar a comunhão para o
autista.
Sendo
assim, penso que a igreja deveria dar uma base e apoio para as famílias que
possuem entre seus membros pessoas deficientes, autistas ou não, como também
vejo como uma vergonha termos que nos deparar com esse grau de preconceito e
ignorância advinda de um padre, que estigmatizou com sua repulsa o sonho de uma
família.
Por
um princípio lógico não podemos criticar sem razão. Mas “cá prá nós” o padre
julgou que o adolescente autista era incapaz de compreender, não levando em
consideração que ele estava sendo preparado há meses para receber a comunhão, e
se não abriu a boca no ensaio foi porque provavelmente a abordagem foi
equivocada. Saiba padre, que os autistas só concordam com gestos em sua direção
se tem confiança em quem o faz, e não em pessoas estranhas ao seu convívio.
Para
nós, pais de autistas e quem me ler concordar, o despreparo do padre além de
intolerável, cruel, é pouco, pois ele demonstrou estar desprovido de
sentimentos cristãos. Na celebração
litúrgica da comunhão, estes acontecimentos se fazem, de certa maneira,
presentes e atuais.
Para
enfrentar a dor da mãe do autista e a repercussão
da asneira, o padre se defende das acusações de preconceito afirmando que em
casos como esse a igreja dispensa necessidade do rito da eucaristia, e mais,
com o respaldo do bispo. Ora senhores: não é correto, afirmar que o catecismo
deve ser interpretado ao pé da letra e, por sua vez, fazer uma arbitrária e
brusca exceção a falha sacerdotal.
A
palavra é uma das mais poderosas ferramentas que o ser humano possui, mas é uma
faca de dois gumes, que além de poder criar um sonho ou destruir tudo, o mau
uso dela, também pode gerar um ferimento profundo. Por isto se diz que "As
palavras são como plumas jogadas ao vento". Não há como juntá-las
novamente.
Quem
sabe esse vento sopre até encontrar o ponto de equilíbrio para chegar ao
caminho que não conhece, não lhe interessando o outro extremo, pois os autistas
tendem repetir os seus estereótipos fora do contexto político ou da cultura que
estão inseridos, uma vez que são soberanos e despreocupados com mesquinharias.
Pais
de autistas, no sentido duplo da palavra, também devem ser cuidadosos com o uso
da palavra, para que ela não se volte contra si mesmo. Quem nunca usou mal uma
palavra, ou quem nunca falou mal de alguém, que me “atire a primeira pedra”.
Quando
se fala em preconceito e discriminação, cada um pode expressar o seu conceito
ou a intencionalidade que considere oportuna. Uma vez identificados não se pode
evitar a lembrança de coisas ruins, pois estas afloram justamente em ocasiões
em que a autoestima está em baixa impedindo que o atingido alcance seu objetivo.
O
poeta e pedagogo judeu, Itzhak Katzenelson, reconhecido como o profeta do
genocídio, pouco antes de ser conduzido à câmara de gás já afirmava: "Num
futuro próximo os nazistas negarão todas as suas culpas e, pior ainda, haverá
pessoas que acreditarão na sua inocência".
Na cidade de Bom Princípio de colonização
alemã, pouco distante de Porto Alegre, é realizada a Festa Nacional do
Moranguinho, onde são consumidas as fantásticas especiarias originadas da maravilhosa
fruta.
Um dos compromissos que o fundador da cidade
teve que assumir perante o governo central, da época, foi o de que seu povo
jamais poderia praticar uma religião que não fosse à católica, e que se alguém
o fizesse, seria expulso da colônia, embora as tradições, hoje já existam
igrejas de linha evangélica funcionando por lá.
Não é novidade para ninguém que na Inquisição,
a Igreja Católica se dizendo autorizada por Deus podia: torturar, matar e condenar
milhares de pessoas à
fogueira sob acusação de heresia. Recentemente começou a pedir perdão por ter
permitido a escravatura, pelo que não fez pelos judeus na II Guerra, pelo que
consentiu na Pedofilia e outras insânias. Quem sabe no amanhã que surge, possa
ela estar pedindo perdão pelo que já fez contra as pessoas deficientes,
autistas ou não.
É possível perceber que os jovens
bom-principienses têm um comportamento bem diferente daqueles que viveram logo
após a guerra e tiveram que construir tudo do zero. Essa nova geração,
acostumada com tudo pronto e sem muito esforço, pode estar perdendo bons
valores éticos transmitidos por seus antecessores.
A religião dos pais de autistas é ecumênica. Em
preces todos rogam a Divindade Maior suas bênçãos para que nossos filhos não
sofram mais do que o inevitável.
“Certo dia, a
professora perguntou as crianças quem saberia explicar quem é Deus?
Uma das crianças levantou o braço e disse:
- A minha mãe me disse que Deus é como o
açúcar no meu leite que ela faz todas as manhãs, eu não vejo o açúcar que está
dentro da caneca no meio do leite, mas se ela tira, fica sem sabor. Deus
existe, e está sempre no meio de nós, só que não O vemos, mas se Ele sair de
perto, nossa vida fica... “Sem sabor.”
Espero que a acessibilidade seja garantida, a
inclusão deverá acontecer como um grande desafio em Bom Princípio, pois se
deixarem as coisas continuarem a caminhar do jeito de todo reprovável que o pároco procedeu
com o adolescente autista ao imaginar que este não abriria a boca: podem
começar a pedir perdão, já.
Valha-nos Senhor!
Nilton Salvador
é Pai de Autista