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Abordagem lúdica para tratamento odontológico do
autista |
A odontologia para pacientes com
necessidades especiais tem um grande desafio no que diz respeito ao atendimento
ambulatorial do paciente autista em razão da dificuldade de relacionamento
social que este apresenta. Psicólogos e especialistas em desenvolvimento
infantil têm apontado há décadas que crianças que possuem desenvolvimento
típico aprendem melhor através de experiências interativas e emocionalmente
prazerosas com outras pessoas. Nestas interações, a criança é um participante
ativo ao invés de um recipiente passivo de informação.
Nos últimos dez anos, os
pesquisadores têm percebido que o mesmo vale para crianças com autismo e
dificuldades similares.
As novas perspectivas e pesquisas
em relação ao autismo estão começando a perceber o que o Programa Son Rise® já
vem praticando há anos. Este programa tem sido utilizado internacionalmente por
mais de 30 anos com crianças e adultos representantes de todo o Espectro do
Autismo e dos Transtornos Globais do Desenvolvimento. O Programa Son Rise® é
centrado na pessoa com autismo. Isto significa que o tratamento parte do
desenvolvimento inicial de uma profunda compreensão e genuína apreciação da
pessoa, de como ela se comporta, interage e se comunica, assim como de seus
interesses. O Programa Son Rise® descreve isto como "ir até o mundo da
pessoa com autismo", e é isso que fazemos para alcançar com êxito o
tratamento odontológico.
O autismo infantil é um transtorno
global do desenvolvimento caracterizado por um desenvolvimento anormal ou
alterado, manifestado antes dos três anos de idade, e apresentando uma
perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios
seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e
repetitivo. Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras
manifestações, por exemplo: fobias, perturbações de sono ou da alimentação,
hetero ou autoagressividade, hand flapping (agitar as mãos), rodopiar etc. O objetivo desse trabalho é apresentar a
técnica usada pela autora para facilitar o tratamento odontológico, minimizando
o estresse e os custos com o procedimento, favorecendo a inclusão social e
treinamento para que mais profissionais usem a técnica, tornando-se aptos a
realizar o atendimento em nível ambulatorial.
RELATO DE CASO
Paciente do gênero masculino, 14
anos, autista, apresentou-se na clínica de odontologia do Projeto Social
"Vila Maria - Um Caso de Amor", da Escola de Samba Unidos de Vila
Maria, acompanhado da mãe à procura de tratamento. Após realização de uma anamnese
criteriosa foi constatado ser um autista de baixo funcionamento, sem
verbalização, riso inapropriado, pouco contato visual, resistência à mudança de
rotinas, sem acompanhamento psicológico, terapêutico ou escolar, que nunca
havia ido ao dentista e apresentava dificuldade de aceitar a higienização bucal
feita pela mãe. Foi relatada sua preferência por carros de brinquedo, e o que
realmente mais apreciava era comer.
Não gostava de ser contrariado e
se sentir preso, nessa situação poderia desencadear uma crise. Essa anamnese
foi realizada só com a mãe sem a presença do paciente porque o tempo da
entrevista poderia deixá-lo nervoso. Após a entrevista iniciou-se o
planejamento das sessões de condicionamento lúdico para o tratamento
odontológico. Nosso vínculo seria conseguido através dos carrinhos e esse era o
primeiro caminho.
Na 1ª sessão de condicionamento
lúdico iniciei com abordagem adaptando o método Son Rise® à odontologia, fui ao
encontro do paciente, que estava sentado na sala de espera realizando
movimentos estereotipados com o tronco para frente e para trás, sem notar minha
presença. Abortei o uso do jaleco branco e nas mãos levava um carrinho de
plástico. Não falei nada, apenas passava na frente dele com o carro entre os
dedos. Sentei ao seu lado e aos poucos fui empurrando o carrinho sobre sua
perna, imediatamente ele pegou. Comemorei com aplausos e disse: "muito
bem!", como indica o Programa Son Rise®. Dessa forma estava sendo motivado
a interagir e a intenção era "entrar no mundo da pessoa com autismo".
Aos poucos foi aceitando que manipulasse o carrinho sobre suas pernas. Mas
precisava mais, teria que entrar ao consultório e era um ambiente novo,
desconhecido, cheio de estímulos visuais que podem sobrecarregá-los e serem
competitivos ao condicionamento, além de odores que poderiam desencadear crises
nesse paciente.
Devemos simplificar o ambiente de
trabalho. Na cabeça, fiz a opção de usar uma tiara com 2 borboletas presas por
longas molas que se mexiam num simples toque, o retorno com essa ação era
buscar o contato visual, uma das mais difíceis maneiras de relacionamento do
paciente autista. Associei o uso da tiara à música "Borboletinha" das
cantigas infantis, em tom baixo e buscando o contato visual. Aos poucos estendi
as mãos ao paciente e o conduzi ao consultório. Mais uma vez deu tudo certo e
ele me seguiu. Comemoramos novamente: "Muito bem! Formidável!", e
mais aplausos. O Programa Son Rise® é lúdico. A ênfase está na diversão. As
atividades são adaptadas para serem motivadoras e apropriadas ao paciente mesmo
que ele seja um adulto. Uma vez que a pessoa com autismo esteja motivada para
interagir com o profissional, este poderá criar situações de aprendizagem - e
no nosso caso é conhecer, entender e aceitar o tratamento odontológico. O
paciente tem que ter segurança no profissional, confiar em suas palavras e
gestos, e o profissional não deve nunca quebrar esse vínculo, respeito e
confiança.
Entramos no consultório e sentamos
sobre um tapete de EVA colocado no chão, onde alguns carrinhos nos esperavam para
prosseguir o condicionamento. Falo em prosseguir porque o mesmo já foi iniciado
no 1º contato, ainda na recepção, onde detalhes não podem ser esquecidos, já
que para esses pacientes não são detalhes. Na altura de nossos olhos estava
fixo na parede um espelho de 0,50 x 1,00 m, para tentarmos de várias maneiras o
contato visual. Alguns pacientes autistas buscam o contato visual através da
imagem refletida no espelho e devemos ficar atentos a isso e comemorar
imediatamente quando esse contato for alcançado, motivando para que ele seja
repetido. Sempre que comemoramos a habilidade adquirida estamos fortalecendo
para que ela se repita. Quando um comportamento é fortalecido é mais provável
que aconteça no futuro. Podemos comemorar com aplausos, bolinhas de sabão e
várias tentativas até encontrar o que realmente motiva essa pessoa.
Buscamos o contato visual porque
será o melhor caminho de comunicação para o paciente perceber que você existe e
aceitar você para seu mundo. Não podemos ter medo de ousar, confiar sempre,
estudar a técnica e aplicá-la com amor. Nessa sessão, conseguimos o contato
visual por três vezes, além disso o paciente entrou espontaneamente ao
consultório, observou tudo, sentiu alguns objetos com as mãos e aceitou o
contato das minhas mãos - que, nesse momento, já estavam com as luvas.
Na 2ª sessão de condicionamento
lúdico, o paciente chegou e imediatamente entrou ao consultório procurando o
carrinho usado na sessão anterior. Meu planejamento era que ele sentasse na
cadeira odontológica, então prendi o carrinho no refletor com fita crepe e
deixei a luz acesa para chamar a sua atenção. Ótimo, ele encontrou o carrinho e
sentou na cadeira. Bati palmas, comemorei e, é claro, dei o carrinho em suas
mãos. Nesse momento consegui mais um contato visual e percebi que nosso vínculo
estava ficando mais forte. Aproveitei o momento para apresentar a seringa
tríplice lançando um pouco de ar no carrinho e depois na perna do paciente,
subindo a caminho da boca. Nesse momento gosto de fazer uso das músicas
infantis, brincando, cantando e apresentando os instrumentos do consultório.
É importante observar cada reação
de nosso paciente, apresentar verbalmente cada ação para não ser uma surpresa e
fazer de maneira calma sem assustar nem causar estresse. Podemos usar figuras
para apresentação dos instrumentos do consultório e depois mostrar o objeto
propriamente dito. Parece que dessa forma eles reagem melhor a novidades, essas
figuras devem ser simples e exemplificar realmente o objeto de maneira clara -
como a fotografia de mãos com luvas, mostrando as mãos com as luvas para que
ele possa sentir sua textura. Se a opção for atender pacientes autistas não
pense que tudo isso "são detalhes". Ótimo, aceitou a tríplice, as
luvas e a manipulação da face, com auxílio de fantoches de dedo e todo apoio
lúdico conseguimos acesso à cavidade bucal, e a higiene oral com escova e pasta
foi realizada. Nunca se esquecer de recompensar: muito bom! Bolinhas de sabão.
Isso é o que afirma o Programa Son Rise®. Para essa sessão já estava ótimo.
Na 3ª sessão ele entrou muito
tranquilamente e sentou na cadeira, arrancou o carrinho do refletor e começou a
gritar alguma coisa que não entendi. De repente o compressor ligou e foi um
desastre, uma gritaria só. Ele batia a mão na cabeça e movimentava o tronco
para frente e para trás. Pedi que desligassem o compressor mas já era tarde,
encerramos a sessão.
A 4ª sessão foi marcada com
intervalo de uma semana para diminuir o estresse anterior. Estava muito ansiosa
ao recebê-lo, mas foi tudo bem: ele entrou, sentou e arrancou o carrinho do
refletor. Desta vez o compressor já estava desligado! Iniciamos com profilaxia
com uso da baixa-rotação, 1º no carrinho, depois na mão, no rosto e finalmente
na boca. Foi ótimo, consegui a profilaxia de todo arco superior e deu para
terminar o exame clínico. Conforme fazia a profilaxia, ia mexendo a cabeça para
que as borboletinhas balançassem e foi ótimo, consegui por várias vezes o
contato visual e percebi que já tínhamos um vínculo. Sessão terminada para não
estressar o paciente. Nesse momento sempre pego o brinquedo e guardo afirmando
que irá encontrá-lo na próxima sessão e sempre dá certo no retorno. A 5ª sessão
foi a mais tranquila de todas: o paciente entrou, sentou, arrancou o carrinho
do refletor e ficou com a boca aberta. ÓTIMO! Terminei a profilaxia e marcamos
retorno bimestral para controle e prevenção, porque o paciente não apresentava
cáries.
CONCLUSÃO
Para conseguir o tratamento
odontológico do paciente autista em ambulatório sem uso das faixas de
contenção, é preciso dedicação do profissional, estudo da técnica proposta,
compreensão das necessidades e limitações dos indivíduos, acreditar que é
possível, paciência, tentar várias vezes cada procedimento e ter muito amor no
que se faz.
BIBLIOGRAFIA
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7. Zink,AG et al. Atendimento
odontológico do paciente autista - Relato de caso. Revista ABO Nacional -
vol.16, nº5, 313-316, out/Nov.2008.
Adriana Zink
link do lattes:https://wwws.cnpq.br/curriculoweb/pkg_menu.menu?f_cod=9B470E8BB09F91E8B3C8861E51F47146 -cirurgiã-dentista especialista em pacientes com necessidades especiais -mestranda na Unicsul -membro da Câmara técnica de pacientes especiais do CROSP -vencedora do VI prêmio orgulho autista Brasil