Por Lucio
Carvalho *
Nas edições retrospectivas e prospectivas
preparadas pelas revistas semanais, o que não faltam são análises e opiniões
sobre os fatos marcantes do ano que fecha e suposições sobre o futuro que se
aproxima imediatamente. Jornalistas e colunistas buscam apanhar do imenso
cultivo de acontecimentos aqueles que julgam os mais relevantes, dentro do seu
raio de observação, mas há quem tente ir além.
No caso da Revista Veja, é o que acaba de fazer a
colunista e escritora Lya Luft. Lya, que previamente procura avisar aos
leitores que não é alguém qualificado a falar a respeito do tema que elegeu,
escolheu tratar em sua coluna dos assassinatos de crianças ocorridos nos EUA em
2012 (O ano das criancinhas mortas, p. 221, ed. 2302, nº1, 02/01/13). A
escritora está longe de ter sido a primeira a abordar o tema e cabe indagar se
existe, de fato, alguém especialista em morticínio infantil capaz de dar conta
de tamanho drama. Seu aviso, portanto, deveria suavizar uma leitura mais
rigorosa, mas empreender a tarefa resta impossível, pois o tema não é comercial
de margarina e uma publicação com milhões de leitores também não pode ser
comparada a um comentário inofensivo nas redes sociais ou um post em um blog
remoto.
Mesmo considerando o salvo-conduto pretendido pelo
aviso prévio da autora , é tranquilamente imaginável esperar encontrar-se uma
análise emocional dos acontecimentos. Faz parte do espírito de fim de ano, do
colunismo de Réveillon, tão impregnado de sentimentalismo. Além disso, o
assunto é polêmico e envolvente, como tudo o que envolve a infância. Não é o
caminho que Lya escolhe, pois ela tenta ir além das próprias emoções, como
observadora do mundo, mas sem perceber ter dado passos aparentemente além da
sua compreensão. Ela o faz ao mixar ideias envolvendo questões complexas como
psicopatia, deficiência, doenças mentais e inclusão social.
Elucidar os mistérios da alma humana tem sido, ao
longo do tempo, uma das buscas mais evasivas tanto para cientistas como para
filósofos e escritores. Dentre as inúmeras possibilidades de abordagem, talvez
a psicanálise seja o fazer que mais tenha se aproximado das bordas de onde se
pode explicar o comportamento. Mesmo ela é contestada e, como se trata de um
assunto intangível, não se pode pretender a primazia na emissão de opiniões.
Todos estão convidados. Os colunistas das revistas semanais, pelo alcance de
que dispõem, serão – entre todos – os mais visitados. Sua responsabilidade,
entretanto, não pode ser exigida (afinal são convidados dos editores, não
experts), mas despir-se dela como condição do inatingível é impensável, ainda
mais quando se trata de escritores do porte de uma Lya Luft.
Ao induzir o leitor a crer que os brutais
assassinatos de crianças ocorridos nos EUA tenha alguma ligação com a tendência
atual, “politicamente correta” segundo a autora, de inclusão geral de alunos
“anormais” entre “normais”, de acordo com seus próprios termos é, no entanto,
uma suposição que extrapola a própria linha de argumentação da autora, além de
reforçar estigmas e preconceitos que continuam a impregnar a sociedade no
início do séc. XXI e, como se vê, em 2013 ainda estarão por aí.
Um esclarecimento urgente em relação ao texto de
Lya compete em desfazer a ideia de que deficiência e doença mental sejam
sinônimos. Parece simples verificar que uma coisa não tem nada ver com a outra,
mas unir seus conceitos em uma mesma argumentação implica pensar que se tratam
de pessoas indesejáveis para o convívio social. São pessoas que estariam, nas
suas palavras, inclusive “não só perturbando a turma, mas afligindo a criança”.
Outro esclarecimento fundamental para a compreensão do texto trata de verificar
o que, de fato, uma afirmação como essa pretende explicar do tema principal,
que é o terrível morticínio das crianças.
Até onde se sabe o assassino de Connecticut não
possuía nem diagnóstico de deficiência nem de transtorno mental. Apesar das
inúmeras suposições, a tentativa de enquadramento clínico a posteriori de seu
comportamento apenas tem servido para que se procure razões imediatas para seu
gesto. Parece que, com isso, resolve-se o impasse. Uma das formas de evitar
novos acontecimentos do tipo seria separar os “normais” dos “anormais”. Sob o
pretexto de preservar a sociedade dos sadios, exclui-se o doente. Em que pese
soar novo o argumento de Lya, tal ideia já era verificável na primeira metade
do séc. XX e mesmo antes disso, com as políticas de segregação e
institucionalização.
Embora isso não seja mencionado em nenhuma parte do
texto, é relevante considerar que o “politicamente correto” de agora, a “inclusão
geral” é um elemento garantido constitucionalmente no Brasil, que se quer uma
sociedade inclusiva. Além disso, o princípio de inclusão social é base da
Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que o Brasil adotou
como emenda constitucional em 2009, através do Decreto 6.949, após votação
unânime no legislativo.
Se exigir que jornalistas e formadores de opinião
estejam cientes dos avanços legais que envolvem minorias possa restar
inefetivo, como se tem demonstrado, é algo que não se pode saber sem que se
procure realizar um gesto nesse sentido. Há excelentes fontes de referência que
estão disponíveis para aqueles que se dispõem a observar o mundo além da sua
varanda. De alguma forma, parece que os textos de Réveillon pedem um toque de
leveza que, no caso de um assunto como este, é bastante complexo de obter.
Mesmo assim, é desejável que ao menos nesse momento de transição entre épocas,
respire-se em relativa paz, como quer Lya Luft. Claro que não pela morte de todos os psicopatas, como se isso fosse
possível, mas pelo conforto que se pode obter pelo esclarecimento, já que pela
vida real nem sempre isto seja possível.
* Coordenador-Geral da revista digital
Inclusive – inclusão e cidadania (www.inclusive.org.br)
e autor de Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com).