Em
todas as unidades, a HRW encontrou corredores e quartos em péssimas condições
com fezes e urinas no chão, sistemas hidráulicos quebrados e superlotação”. Uma
dura realidade que não é um privilégio africano, mas que ainda persiste em
muitos lugares da Terra. Uma realidade manicomial que ainda temos de
ultrapassar e nunca mais retomá-la como modelo de cuidados em Saúde Mental,
aqui, lá e em qualquer longitude ou latitude...
Tornou-se uma atividade mundial a lembrança
com datas para os assuntos que mobilizam em direção tanto para o consumo como
para as questões humanas ou humanitárias. No dia 10 de outubro, assim como
recentemente outros “dias” (Alzheimer, Autismo, etc...), comemora-se, ou
melhor, somos lembrados do Dia Mundial da Saúde Mental. E este como muitos
outros dias já passou, e a realidade sempre volta.
Eu, aqui entre quem já estive em seu “front”,
na área psicossocial, hoje me sinto muito mais próximo dos que a vivem como uma
”guerra” cotidiana. Digo isso, pois também tenho minhas comemorações nesses 10
dias de outubro. Aliás, muito menos devo comemorar do que relembrar apenas a
data de minha neurocirurgia há 03 anos. E ainda tive também meus dias
seguintes, meus “days after”... Ou seja, a minha “queda” dentro de um hospital
público da rede do SUS..
Foi após esse Outubro, que não deixava de ser
também o Outubro Rosa no combate contra o Câncer de Mama, que pude vivenciar o
quanto precisamos, urgentemente, da Bioética. Essa “invenção” transdisciplinar
dos anos 70 tem uma presença cada vez mais indispensável nos campos das
ciências, biotecnologias e, em especial, no campo da Saúde.
Quando passei pela experiência, corporal e
psíquica, da ameaça de vulneração dentro de um hospital é que comecei a
repensar a resiliência e seu sentido bioético. Este termo não é muito empregado,
por enquanto, nas questões de saúde, em especial na Saúde Mental. Porém posso
dizer que o experimentei na própria pele...
A “resiliência” significa, no seu sentido
primordial, a capacidade de plasticidade que um material, mesmo rígido, tenha
de recobrar sua forma original depois de ser submetido às pressões que o
deformem. O termo e conceito foram inicialmente tomados de empréstimo pela
Psicologia, em sua crítica às leituras que se fizeram sobre as crianças que
sofrem traumas infantis.
A visão clássica era de que estariam
condenadas a reproduzir esses traumas, e, como seres humanos vulneráveis,
trariam para sua vida adulta todas as “feridas” da tenra infância. Porém o que
verificou com pesquisas é que não esse determinismo. Nem todas as crianças, ou
seres humanos, são marcados por essas situações de vulneração e trauma
igualmente.
O surgimento da capacidade de resiliência, em
muitos, pode demolir essa visão tanto quanto a ideia de invulnerabilidade. Nem
condenados, nem vítimas e, muito menos, heróis. Somos, nos tornando resilientes
apenas seres humanos em sua infinita capacidade de superação e aprendizado. Não
digo que temos resiliência, digo que a experimentamos e a desenvolvemos.
O que acontece quando temos uma doença
crônica, um diagnóstico de AIDS ou câncer? O que se passa, principalmente, por
nossas mentes? O que essa situação de hiperestresse provoca em nossos corpos?
O que se passa com nosso mundo psíquico,
fragilizado e frágil, quando temos de aprender a conviver com outro modo de
andar, conviver e se relacionar, vivenciando, por exemplo, uma deficiência
pós-traumática?
Tornamo-nos aquilo ou aqueles
antes apontávamos ou identificamos como sendo diferentes de nossa suposta
normalidade? Talvez essa vivência inesperada possa vir a ser a diferença.
Porém, cada um em sua singularidade e subjetividade, passará por uma
experiência vital única e incomparável. É quando podemos desenvolver essa
capacidade de projeção menos sombria e mortal que muitos alardeiam ou se
vitimizam. Pode nascer em nós a capacidade de ir além dos diagnósticos,
incapacidades ou perdas de funcionalidade.
Há aí uma capacidade, que poderíamos ousar
dizer universal, de aprendizado, superação e formas diferenciadas de
transformação pessoal. Chamaremos essa potencialidade de resiliência ou
re-existência? Podemos como muitos fazem, e se utilizam disso, nos colocarmos
no papel de vítimas. As nossas novelas que ocupam, a meu ver, muito mais espaço
das vidas e das redes sociais, são peritas nessa produção de subjetividade.
Nessa temporalidade da Idade Mídia e da
Sociedade do Espetáculo há sempre alguém muito mais interessado no destino de
uma “Carminha” do que dos muitos brasileiros e brasileiras que vivem reais
condições de produzir, enfrentar ou serem derrotadas pelas adversidades
inevitáveis da Vida.
Somos estimulados uma posição
vitimada e vitimizadora. Diante dos processos de perda de papel micropolítico,
ou mesmo macro político, é que muitos passam a situação de hiper-vulneráveis
pelo Estado. Sugiro, então, a partir de minha própria vivência, que é a busca
dos antídotos revitalizadores, para além das urnas, que podem multiplicar
nossas resistências e resiliências coletivas.
O campo da Saúde Mental é e sempre será
propício para esta práxis e proposta psicossocial. Porém não podemos
revitalizar o que for fazer crescer em nós, como cicatrizes mal tratadas, os
modelos messiânicos, as buscas apocalípticas, os fundamentalismos e as
micro-fascistações que nos são profundamente tentadoras por suas promessas
fáceis e mistificadoras. Não há mudanças radicais de uma vida sem o aprendizado
com suas perdas, mas também com seus ganhos em novos saberes ou sabedorias.
Eu, aprendi a sonhar, mas não creio nesses
profetas que hoje saem das igrejas-partidos em direção às Câmaras ou outros
espaços da política e dos poderes constituídos. Principalmente pela ausência
real de propostas de políticas sociais realmente estruturantes. Ainda mais no campo
da Saúde Mental ou a Coletiva e Pública.
Basta que pensemos nas promessas de candidatos
a prefeitos, recém-propagandeadas, de resolução “total” de nossos problemas
sociais, econômicos, habitacionais, educacionais e, mais localizadamente, de
nossas muitas saúdes. São as falácias e os espetáculos macro políticos que se
perpetuam abusando das camadas populacionais vulneráveis.
Essas chamadas de “comunidades” estão e
estarão precisando de uma intervenção micropolítica que as ajude a despertar na
e com a resiliência. Assim como em nós, individualmente. Porém como nos ajudar
nesse processo de recuperação da dignidade e do direito à justiça social? Há
sim como recuperarmos nossas diferentes saúdes, principalmente se a
reconhecermos como um fundamento para todos os outros direitos humanos que
temos.
Não há com quebrar os mecanismos do que chamo
de vulneração, por exemplo, das pessoas com deficiência, sem um processo ativo
de seu emponderamento. Um processo histórico que quebra os velhos paradigmas
reabilitadores ou biomédicos e lhes dá um lugar social e políticas públicas
para além da visão sedimentada de que são apenas objeto e não sujeitos de
direitos.
Essa mesma mudança de paradigmas, que
conquistamos com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
apesar da conceituação e o abraço conceitual de deficiências psicossociais para
quem vive transtornos mentais graves ou persistentes, ainda não ocorre, a meu
ver, no campo da Saúde Mental.
Ainda temos uma visão e práxis que não
reconhece a força das pressões sociais e econômicas na produção de muitos
quadros psicopatológicos. Quando lemos que as pessoas estão vivenciando mais
quadros depressivos e as taxas de suicídio aumentam é que deveríamos pesar,
para além de refletir, o quantum da pressão social que as crises econômicas vêm
produzindo, desde 1929, a Grande Depressão nos EUA.
E, então para socorrer e tratar dessas
populações em crescimento “assustador” e “epidêmico” surgem apenas as
constatações e as epidemiologias. São criadas as recentes biopolíticas. Os
orçamentos e os seus valores em milhões, a princípio, são grandiosos. Há,
porém, a persistência da serialização e multiplicação dos diagnósticos e das
suas curas. Serão apenas 350 milhões ou 5% da população mundial (OMS) que
vivencia as diferentes depressões? E amanhã, quantos seremos?
Um psiquiatra português diante do chamado
“desânimo” diante da crise econômica que castiga seu país e a Europa nos
informa que: “...os doentes mentais crônicos também são vulneráveis a esta
situação de crise". Roma Torres salienta que "o sistema de saúde é
onde as pessoas acorrem muitas vezes em situações de dificuldade que nem sempre
é da saúde e isso nota-se particularmente na área da psiquiatria".
Essa mesma psiquiatria que tenta a remoção dos
estigmas e dos mitos tentando ensinar novos modos de ver, cuidar,
institucionalizar e revisar perguntando às crianças: “o que é um maluco?”.
Outras notícias e outras visões nos informam
que, nesse Dia Mundial da Saúde Mental, devemos sim é fortalecer as chamadas
redes psicossociais de cuidados e tecnologias sociais. São os sujeitos em
interação, com os mais diferentes suportes em suas territorialidades ou espaços
de convívio que, emponderados, passam de vítimas vulneráveis a ativistas de
seus direitos. Podem, então, participar e até fiscalizar as políticas públicas,
não assistencialistas, que possam ir para além dos paradigmas biomédicos ou
reabilitadores.
O exemplo do surgimento dessa resistência que
fomentará a resiliência que pode vir, por exemplo, das pessoas que são
consideradas objetos de intervenção social. Nessas medidas, desde os Caps
(Centros de Atenção Psicossocial) até os Centros de Reabilitação, os governos
investem em busca do atendimento de uma demanda crescente chamada de “doentes
mentais”, a maioria, como no resto do mundo ocidental, submetida ainda um
modelo fisicalista, farmacológico e orgânico de seu adoecimento e sua
cronificação.
As depressões prefiro-as no plural e na
pluralidade, só estão cada dia mais “diferentes”.
Nessa constatação o colega ultramarino também
identifica e prescreve a solução final dos nossos modelos tão difundidos de
re-internação, re-hospitalização, inclusive com a judicialização da saúde
mental e os processos de justificação das internações compulsória, em especial
dos drogadictos, reedição dos modelos higienistas e manicomiais.
Há alguma perspectiva que nos dirija para as
desinstuticionalizações para além das Reformas? Há, realmente, em ação uma
mudança de paradigmas que nos abra um caminho para resiliência comunitária, ou
melhor para uma resistência diante de tanta desumanização do cuidado em Saúde?
Nossos novos minicômios em ação são mais pulverizadores e invisibilizadores do
que os Juqueris, os velhos manicômios, e seus muros visíveis? As correntes que
se usam aqui são mais “finas e sutis” que as usadas em Gana?
Minha utopia, aliás, minhas utopias e sonhos
não serão demolidos por essas duras tecnologias que se repetem e reproduzem nas
palavras “compulsória e involuntária”. Há um desejo nascente do meu estudo da
Bioética que aponta possibilidades, pontes para o futuro, que transformam os
chamados “portadores” de deficiências ou doenças, mesmo as raras, em novos
sujeitos resilientes.
Em minha própria pele, esse que
é o maior órgão do corpo humano, e também nosso egóico protetor, às vezes
excessivamente narcísico, venho tentando a experimentação do árduo aprendizado
de me tornar resiliente. Por isso escrevo tantas Cartas de Vida(s) à Dona
Morte. Por isso amplio minha própria vulnerabilidade, questiono meus
pré-conceitos, busco essa nova e renovada visão da saúde, para além de
quaisquer doenças ou incapacidades.
Com mais este texto, em nosso contexto
político das privatarias, dos mensalões, das corrupções visíveis e invisíveis,
faço mais um convite para o re-conhecimento do quanto a Bioética pode trazer de
estímulo para a proteção e salvaguarda dos que estão em uma ponte, só que
pensando, silenciados e silenciosamente, no suicídio e falsa redenção pela
morte.
Entre a ponte para um futuro com mais justiça,
menos exclusões, sem estímulo às desfiliações sociais e aos horrores econômicos
de um hipercapitalismo parasitário, essa ponte de onde saltam a cada 40
SEGUNDOS globais os seres em desesperança e desilusão vital, qual é a ponte que
pretendemos atravessar, juntos, em direção de nossos devires?
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jorgemarciopereiradeandrade