No Dia Mundial do Autismo, familiares e
especialistas fazem campanha contra o mito de que portadores não reconhecem o
carinho
Aos dois anos de idade, o caçula da família
Fonseca, João Pedro, foi diagnosticado como portador do transtorno autista.
Desde então, o menino fez - e faz - cair por terra os estereótipos disseminados
sobre o problema no desenvolvimento infantil que afeta um milhão de pessoas do
Brasil, conforme contabilizou o Instituto de Psiquiatria da Universidade de São
Paulo (USP).
"Quem olha para o João Pedro, hoje com nove
anos, cantando, feliz, brincando e sendo este menino que é carinho puro, duvida
que ele seja autista. Deve ser porque eu nunca duvidei do turbilhão de
sentimentos e capacidades que sempre moraram dentro do meu filho”, avalia
Denise Fonseca, 40, que é professora e faz parte de um grupo de mães de
autistas do Rio de Janeiro, o Mundo Azul.
“Graças à terapia precoce e a nossa não
desistência, todas essas sensações foram, pouco a pouco, traduzidas em beijos e
abraços diários”, completa.
João Pedro, 9 anos, aprendeu com o irmão Jorge, 14, a gostar de Skank e Paralamas do Sucesso. |
Os especialistas ainda não conseguem afirmar com
clareza quais são as causas do autismo - condição que não é detectada por
exames no pré-natal e, na maior parte das vezes, só se manifesta a partir dos
dois anos de idade. Mas os estudiosos sabem que os principais sintomas do
espectro autista - dificuldade na fala, na comunicação, de fazer contato visual
e estabelecer relação com o entorno - contribuíram para disseminar duas
informações equivocadas e perigosas sobre eles.
“Um dos
maiores perigos de acreditar que o autista é incapaz de afeto e que não vive no
mesmo mundo que o nosso é que, assim, ele acaba subestimado e diminui as
chances de desenvolvimento da criança”, alerta a psicomotricista e pedagoga
Eliana Boralli Mota, fundadora da AUMA (Associação dos Amigos da Criança
Autista).
“Eu trabalho há 24 anos na área e conheci autistas
de todos os lugares: Brasil, América Latina, Europa e Japão. Em todos os casos,
sempre encontrei neles o idioma universal do afeto. Mas é preciso um trabalho
para ajudá-los a organizar estas sensações e então manifestá-las", orienta
Eliana.
Preconceito no consultório
Os potenciais afetivos e de capacidades dos
autistas são minados pelo preconceito e pela falta de informação presentes,
inclusive, em parte dos psicólogos, psiquiatras e neurologistas. Eliana, por
exemplo, antes de virar especialista na área, levou a filha Nathália, na época
com três anos, à clínica de um dos nomes mais famosos do tratamento de autistas
dos anos 1990.
“O médico disse que minha filha nunca seria capaz
de falar. Sentenciou que, em 15 anos, ela estaria internada em uma clínica, com
camisa de força”, lembra a mãe que ficou incomodada com a rapidez de um
prognóstico tão severo, dado após um único contato com a menina.
“Eu não me conformei com aquelas informações e fui
atrás de outras possibilidades. Hoje, a Nathália está com 27 anos, é alfabetizada,
uma pessoa cheia de vontades e bem temperamental. Tenho um orgulho danado
quando a vejo expressar sensações das mais elaboradas. Ela sempre diz ter
saudade de mim", diz a mãe que atua para levar estas possibilidades de
convívio afetivo dos autistas a outros pais.
João Pedro foi diagnosticado como portador do
transtorno autista aos dois anos de idade
Sensações aguçadas
As descrições científicas sobre os autistas
confirmam que o caminho entre "sentir" e "manifestar" é
mais complicado para eles do que para os não portadores do transtorno. De
acordo com as descrições dos catálogos médicos “há modificação na captação e
organização sensorial da audição, visão, paladar, olfato e tato”. Estas
alterações comprometem a capacidade de imitação, percepções, coordenação motora
e integração por vias sensoriais.
“A maior dificuldade do autista é se colocar no
lugar do outro", define a fonoaudióloga Aline Kabarite, diretora do
Instituto Priorit - entidade que oferece atendimento multifatorial (psicologia,
dança, esporte, teatro e terapia) a cerca de 100 crianças e adolescentes
autistas.
Aline explica que as sensações para o autista são,
em alguns casos, muito mais aguçadas. “Às vezes, um som que passa despercebido
para outras pessoas provoca um incômodo terrível nos autistas. Um abraço não
desperta, imediatamente, prazer, e sim, desconforto”, informa.
Por isso, explica ela, o trabalho com os autistas
tem como objetivo fazer com que eles fiquem adaptados a uma forma de linguagem
que torne mais fácil expressar as sensações e receber essas informações.
“É um refinamento social e é importante que os pais
reconheçam as formas de afeto que inicialmente podem estar ocultas”, diz ao
citar exemplos. “Enquanto a criança autista não reconhece como processar o carinho
da mesma maneira que nós estamos acostumados, para ela fazer um desenho,
preparar um café da manhã ou colocar a mão no ombro podem ser maneiras mais
elaboradas de expor suas sensações afetivas.”
Receio inicial
Com o trabalho multifatorial, afirmam os
especialistas, paulatinamente, essas expressões de sensações ficam menos
codificadas e já não exigem a “tecla SAP” por parte dos pais, irmãos ou
professores. É fato que alguns autistas apresentam sintomas mais leves, outros
mais moderados e existem os casos severo. Essas modulações interferem na
interação com o entorno.
Em todos os casos, solicita Roberta Marcell,
especializada em neuropsicologia e saúde mental e desenvolvimento
infanto-Juvenil pela Santa Casa do Rio de Janeiro, o importante é não abrir mão
da comunicação pelo caminho do afeto com os filhos.
Eliana e a filha Nathália, com 27 anos: 'Disseram
que ela nunca falaria. Nathália hoje é alfabetizada e expressa sensações
elaboradas, como a saudade'
“Mesmo que os pais tenham dificuldade em reconhecer
o carinho dos filhos, eles não devem desistir de demonstrar o amor que sentem
pela criança. Essa construção de relação não deve ser abandonada nunca.”
Alessandra Rodrigues Pereira, 35, é exemplo. Quando
recebeu o diagnóstico de autismo do filho Eduardo, então com um ano e sete
meses de vida, foi invadida por um temor. “Naquele momento, eu perdi meu filho.
Não apenas o filho idealizado, eu perdi aquele bebê saudável, que dava lindas
gargalhadas, mandava beijos. Naquele momento, eu temia o futuro.”
A suspeita de que Eduardo se desenvolvia de maneira
diferente das outras crianças veio com uma comparação próxima. O garoto é irmão
gêmeo de Luísa e ela crescia em um compasso diferente do que regia o irmão. Alessandra,
funcionária pública do Ceará, procurou ajuda terapêutica para o filho o mais
rápido possível. A decisão surtiu efeito, pois, com ela, a mãe também aprendeu
que aquele estereótipo “pessoa isolada, estagnada, que passava o tempo inteiro
balançando o corpo e não se comunicava com ninguém não correspondia à
realidade.”
“Hoje eu tenho uma criança que corre, sorri, tenta
mostrar o que quer – embora não fale”, diz a mãe sobre o menino que faz
acompanhamento com psicóloga, neuropediatra, fonoaudióloga e terapeuta
ocupacional e tem aquela bela ajuda de Luísa que trata o irmão sem ressalvas ou
limitações.
Eduardo sempre surpreende Alessandra “com a
mãozinha dele no meu cabelo enquanto estou dirigindo”. Nathália sempre quando
observa a mãe cansada, pergunta “o que aconteceu com você?”, questionamento que
Eliana quase não ouve de outras pessoas. João Pedro, fã de Skank e NX Zero –
grupos que aprendeu a gostar por influência do irmão Jorge - parece ter o radar
ligado sobre o que acontece em sua volta. Só um exemplo, cita a mãe Denise: “Se
escuta, lá longe, alguém espirrando, já grita ‘saúde’”.
Fonte
Fernanda Aranda - iG
São Paulo
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