Luana, de 21 anos, durante a gestação de SofiaEstar
grávida hoje em dia é um desafio e nunca foi tão estressante. A lista de coisas
que pode e não pode é enorme. A relação de fatores de risco pré-natal tem
invadido a mídia: gripe, antidepressivos, açúcar, gordura, café, sushi, gatos,
tipo de música, muito (ou pouco) exercício físico e até a idade das mães são
assuntos do momento. E se a futura mamãe ficar ansiosa ou estressada, ainda
terá que conviver com olhares de reprovação social.
Na história da medicina, não faltam exemplos
mostrando como experiências uterinas afetam os descendentes. Existe uma
verdadeira fixação e fascinação dos pesquisadores sobre o assunto. Faz sentido,
afinal durantes os 9 meses iniciais de nossa vida esse foi nosso único ambiente
e onde ocorrem etapas cruciais do desenvolvimento humano. Não existe nada de
errado nesse tipo de estudo, mas o foco demasiado em cima das mães chamou até a
atenção dos pesquisadores nessa área que decidiram dar um “toque” aos
jornalistas de ciência. Um editorial recém publicado na Nature, de autoria da
pesquisadora Sarah Richardson, chama a atenção para o problema. Abaixo eu
ressalto alguns dos exemplos citados e incluo outros, aproveitando para opinar
como cientista nesse assunto.
Ultimamente, diversos assuntos relacionados ao tema
têm destacado as alterações epigenéticas (análise de modificações hereditárias
no DNA que influenciam a atividade dos genes sem alterar a sequencia genética).
Essas alterações implicam riscos de obesidade, diabetes e resposta a estresse
durante o desenvolvimento das crianças.
Como o assunto é altamente complexo sob a
perspectiva molecular, e também multifatorial, a mídia tende a simplificar o
assunto, focando apenas no impacto materno. Manchetes como “Dieta materna
altera o DNA do feto” ou “Grávidas sobreviventes de desastres transmitem o
trauma para os filhos” são relativamente comuns de se achar em jornais e
revistas de grande circulação. Fatores como a contribuição paterna, a vida em
família e o ambiente social recebem muito menos atenção. Como consequência,
existe um sentimento de culpa e vigilância desnecessários em mulheres grávidas
e mães em geral.
Existem diversos exemplos de como a sociedade culpa
as mães por doenças dos filhos. Evidencias científicas de que o álcool em
excesso pode causar complicações e má formações durante a gestação levou à
recomendação de que mulheres grávidas evitassem a bebida. O consumo alcóolico
durante a gravidez foi estigmatizado e até criminalizado. Bares e restaurantes
são obrigados avisar que a bebida causa defeitos congênitos nos EUA, mesmo que
não existam evidências sugerindo qualquer problema com o consumo moderado.
Aliás, mulheres que bebiam moderadamente passaram a evitar o consumo durante a
gravidez, mas o número de crianças vítimas do abuso de álcool não diminuiu.
Como consequência, a visão da mulher grávida tomando um drink é hoje em dia
altamente condenável para a maioria das pessoas e faz com que agonizem a
gestação toda por um golinho ocasional.
Nos anos 80 e 90, o uso de crack criou uma histeria
midiática com os famigerados “filhos do crack” – crianças nascidas de mulheres
viciadas e que foram expostas à droga ainda no útero. Grávidas dependentes de
drogas perderam benefícios sociais, a guarda dos filhos e muitas acabaram na
prisão, a grande maioria negras e pobres, condenadas por expor fetos indefesos
à droga. Os filhos também sofreram, estigmatizados e condenados ao fracasso
social desde o nascimento. Hoje sabemos que a exposição do feto ao crack ou
cocaína é considerado tão nocivo quanto ao cigarro ou álcool em excesso. Mesmo
assim, apenas usuárias de drogas são condenadas criminalmente nos EUA.
Outro exemplo clássico de “culpa materna” é o
conceito de mãe-geladeira (uma metáfora que sugere o desapego e frieza
emocional), dando origem a crianças autistas nos anos 50-70. E não faz muito
tempo atrás que diversos livros médicos ainda atribuíam alterações mentais e
tendências criminais a uma postura materna, inclusive as amizades durante a
gestação, ignorando completamente as origens biológicas dessas condições e
diversos outros fatores ambientais. Suporte inadequado a mulheres grávidas e
afirmações pouco contextualizadas ainda hoje são encontradas em materiais
educacionais com boas intenções. Duvida? Veja no website montado pelo Imperial
College London que mostra um adolescente saindo da prisão e sugere que cuidados
pré-natais poderiam auxiliar no combate ao crime. Inacreditável, não?
Por isso que o foco materno das pesquisas
epigenéticas ainda lembra esse tipo de atitude do passado, colocando todo o
contexto social e diversos outros fatores em segundo plano. Outro erro comum
que ainda persiste é o de estabelecer causa e efeito. Novamente, estudos com
autismo são notórios por isso. Ao relacionar a incidência de autismo com
fatores externos (vacinas, morar perto de avenidas ou de antenas de celulares),
muitas reportagens não deixam claro que a conclusão é apenas correlacional e
evitam mencionar dados inconsistentes (por exemplo, a correlação estatística
desaparece se consideramos idades diferentes ou outra variável).
Para evitar que esse tipo de atitude continue,
tanto a mídia quanto os leitores teriam que ser mais críticos cientificamente.
Primeiro, evitando extrapolar estudos com camundongos para humanos. Segundo,
balanceando o papel tanto do pai quanto da mãe. Terceiro, demonstrando
complexidade no assunto ao mostrar que diversos fatores variáveis acontecem ao
mesmo tempo, sendo muitos desconhecidos. E por final, reconhecendo o papel da
sociedade, principalmente ao apontar soluções para o problema.
Os métodos e a tecnologia científica têm aumentado
consideravelmente em complexidade nos últimos dez anos. A tendência é que isso
seja exponencial, ou seja, cada vez mais difícil de se traduzir para uma
linguagem leiga e simples. Por isso mesmo, a sociedade tem que ser mais
crítica, exigindo melhores formas de comunicação científica da mídia e dos
próprios cientistas. Acho que isso vai auxiliar no entendimento das pesquisas,
sem apontar culpados ou restringir a liberdade das futuras mães.
* Foto: Luana Siqueira/Arquivo Pessoal
FONTE:
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/blog/espiral/post/culpa-da-mae.html
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