ABAIXO DA CRÍTICA
Resenha do livro ‘A batalha do autismo’, publicada na CH (Ciência Hoje),
aponta interesses explícitos do texto, pouco conteúdo de base científica e
desatualização de dados sobre o transtorno.
Por: Francisco Assumpção
Escrito pelo psicanalista francês Éric Laurent, este
livro se propõe a oferecer um painel dos debates referentes ao autismo, bem
como a desmistificar a burocracia sanitária, possibilitando perspectivas ao
tratamento das pessoas autistas. Sua leitura é, a princípio, extremamente
interessante, como o é a leitura de qualquer panfleto, considerado pelo
dicionário Aurélio como um escrito satírico ou violento, geralmente político.
Assim, já como ponto de partida, não se pode considerá-lo um livro científico.
Apesar disso, podemos dividi-lo em duas partes bastante distintas.
O livro se
propõe a oferecer um painel dos debates referentes ao autismo
Uma delas, composta pelo prólogo, pelos três
capítulos da parte dois, pela conclusão e pela própria introdução ao leitor
brasileiro, consiste em um libelo que, no país, tem um endereço específico: a
determinação da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, exigindo o
diagnóstico a partir de avaliação neurológica e/ou psiquiátrica, e atendimento
multiprofissional, a partir de abordagens em linguagem pragmática e em técnicas
cognitivo-comportamentais, fatos tidos como inadmissíveis por toda uma gama de
profissionais, embora tenham aceitação internacional.
Trata-se assim de mera discussão e defesa sobre
mercado de trabalho, ainda que tente se justificar sob a égide de uma visão
democrática e (como era de se esperar nesta pós-modernidade) politicamente
correta.
Para tal justificativa, alguns argumentos, que devem
ser pensados, são utilizados. Citando o livro Imposturas intelectuais, de Alan
Sokal e Jean Bricmont (Record, 1991), podemos observar uma confusão entre o
sentido corriqueiro e o técnico das palavras, bem como em ambiguidades que são
frequentes em todo o texto.
Capa do livro Autismo
Um bom exemplo encontra-se logo
ao se iniciar a segunda parte, quando se destaca que a medicina baseada em
evidências “recusa as coortes de caso com seu acompanhamento”, esquecendo-se
que estudos de coorte, muito utilizados em epidemiologia, correspondem a “se partir
de um fator de exposição (causa) para se descrever a incidência e analisar
associações entre causas e doenças. Fornece assim excelentes informações sobre
as causas de uma doença, embora apresente alto custo e demande longo período de
tempo, podendo ser confundido com estudos de caso-controle”.
O que realmente não se diz é que estudos de coorte
não correspondem a meros estudos de caso, realizados de maneira descritiva e
anedótica, como muitos são descritos no decorrer da obra. Da mesma maneira,
inúmeras outras afirmações são feitas desconsiderando o significado técnico, o
que ocasiona erros de interpretação e, principalmente, afeta a credibilidade da
obra.
A segunda parte, um pouco mais séria, trata a
questão do autismo sob uma ótica extremamente específica, lacaniana, que, no
dizer de Catherine Meyer, em O livro negro da psicanálise (Civilização
Brasileira, 2011), reflete a décalage [descompasso] entre a hegemonia da
psicanálise na França e seu declínio no restante do mundo, frisando que somente
Brasil e Argentina acompanham esse movimento conservador.
Teorias especulativas
Considerando essa parte teórica, as mesmas críticas
me parecem procedentes, uma vez que teorias especulativas são apresentadas como
ciência estabelecida – mesmo se não considerarmos as que Sokal e Bricmont
apontam exaustivamente quando se referem à utilização que Jacques Lacan faz de
palavras como ‘topologia’ ou ‘toro’, procurando dar uma aparência matemática
(enquanto “ciência pesada”) para analogias arbitrárias.
Assim, considerando-se o tema, autismo, antes de
lançarmos generalizações teóricas (e, neste caso, a partir de pouquíssimos
casos relatados), seria interessante que nos debruçássemos sobre dados
empíricos (bastante desvalorizados pelos intelectuais pós-modernos) para checar
a procedência de determinadas afirmações.
Mulher autista
Os métodos terapêuticos do autismo devem se basear em testes empíricos e
na análise dos resultados obtidos em diferentes locais e ambientes.
(foto: guenter m. kirchweger/ Freeimages)
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Talvez isso esteja presente porque, sob determinadas
condições (e a defesa de mercado é uma delas), o mundo real dificilmente
importa (e, neste caso, os indivíduos autistas), embora o objetivo básico a ser
buscado deva ser o desenvolvimento de estratégias eficientes para a verificação
dos fatos, usando-se para isso bases de dados universalizadas, que permitam a
escolha dos melhores e mais eficazes projetos terapêuticos. Principalmente se pensamos
em saúde pública, a qual deve maximizar os benefícios para a maior parcela da
população atendida, considerando-se os exíguos recursos a ela destinados.
O objetivo básico a ser buscado deve ser o
desenvolvimento de estratégias eficientes para a verificação dos fatos,
usando-se para isso bases de dados universalizadas,
que permitam a escolha dos
melhores e mais eficazes projetos terapêuticos.
Deve-se, portanto, ‘checar’ a eficácia dos métodos
terapêuticos propostos não a partir de modelos teóricos, embasados na
autoridade de quem fala, mas sim a partir de testes empíricos e da análise dos
resultados obtidos em diferentes locais e ambientes.
A nada disso o presente livro se propõe. Resta-nos
então lê-lo por aquilo que de fato é: um texto com interesses explícitos, pouco
conteúdo de base científica e totalmente desatualizado em relação ao que se
pensa sobre autismo, no mundo, hoje.
Para quem ainda não acredita, sugiro a leitura do
número de janeiro de 2014 da Child and Adolescent Psychiatric Clinics of North
America, que traz artigos recentes e documentados sobre o manuseio agudo dos
‘transtornos do espectro do autismo’. Independentemente da crença ou das falhas
(indubitáveis) presentes no DSM 5 (Dicionário de Saúde Mental, da Associação
Americana de Psiquiatria), utilizado pela publicação, é, ao menos, uma
informação atual e razoavelmente embasada.
FONTE:
Francisco Assumpção
Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo
Publicado em 07/08/2014 | Atualizado em 07/08/2014
http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2014/316/abaixo-da-critica