Para uns, ela é uma droga perversa. Para outros, a ''tábua de salvação''. Trata-se da ritalina, o metilfenidato, da família das
anfetaminas, prescrita para adultos e crianças portadores de transtorno de deficit
de atenção e hiperatividade (TDAH).
Teria o objetivo de melhorar a
concentração, diminuir o cansaço e acumular mais informação em menos tempo.
Esse fármaco desapareceu das prateleiras brasileiras há poucos meses (e já
começou a voltar), trazendo instabilidade principalmente aos pais, pela
incerteza do consumo pelos filhos.
Ocorre que essa droga pode trazer
dependência química, pois tem o mesmo mecanismo de ação da cocaína, sendo
classificada pela Drug Enforcement Administration como um narcótico. No caso de
consumo pela criança, que tem seu organismo ainda em fase de formação, a
ritalina vem sendo indicada de maneira indiscriminada, sem o devido rigor no
diagnóstico. Tanto que, no momento, o país se desponta na segunda posição
mundial de consumo da droga, figurando apenas atrás dos Estados Unidos. Como
acontece com boa parte dos medicamentos da família das anfetaminas, a ritalina
'chafurda' a ilegalidade, com jovens procurando a euforia química e o emagrecimento
sem dispor de receita médica. Fala-se muito que, se não fizer o tratamento com
a ritalina, o paciente se tornará um delinquente. "Mas nenhum dado permite
dizer isso. Então não tem comprovação de que funciona. Ao contrário: não
funciona", critica a pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, professora
titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da
Unicamp.
“A gente corre o risco de fazer um genocídio do futuro.
Mais vale a
orientação familiar”, encoraja a pediatra, que concedeu entrevista, a seguir,
ao Portal Unicamp.
Portal Unicamp – Há pouco tempo, faltou
distribuição de ritalina no mercado brasileiro. Como essa lacuna foi sentida?
Cida Moysés – Não sabemos verdadeiramente o motivo
de faltar o medicamento, mas isso criou uma instabilidade nas pessoas. As
famílias ficaram muito preocupadas e entraram em pânico, com medo de que os
filhos ficassem sem esse fornecimento. Isso foi sentido de um modo muito mais
intenso do que com outros medicamentos que de fato demonstram que sua
interrupção seria mais complicada que a ritalina. São os casos dos medicamentos
para diabetes ou hipertensão. Apesar de não conhecermos a razão dessa falta do
medicamento, sabemos das estratégias de mercado para outros produtos como o
açúcar e o café que faltam no supermercado e, por isso, também para os
medicamentos que faltam na farmácia. Quando somem das prateleiras, eles criam
angústia. No entanto, em geral, retornam mais tarde. E mais caros, é óbvio.
Portal Unicamp – O que é a ritalina? Como ela age?
Cida Moysés – A
ritalina, assim como o concerta (que tem a mesma substância da ritalina – o
metilfenidato, é um estimulante do sistema nervoso central - SNC), tem o mesmo
mecanismo de ação das anfetaminas e da cocaína, bem como de qualquer outro
estimulante. Ela aumenta a concentração de dopaminas (neurotransmissor
associado ao prazer) nas sinapses, mas não em níveis fisiológicos. É certo que
os prazeres da vida também fazem elevar um pouco a dopamina, porém durante um
pequeno período de tempo. Contudo, o metilfenidato aumenta muito mais. Assim,
os prazeres da vida não conseguem competir com essa elevação. A única coisa que
dá prazer, que acalma, é mais um outro comprimido de metilfenidato, de
anfetamina. Esse é o mecanismo clássico da dependência química. É também o que
faz a cocaína.
Portal Unicamp – Quando a ritalina é indicada?
Cida Moysés – Para quem indica, é nos casos com
diagnóstico de TDAH. Eu não indico. Para esses médicos, entendo que é
necessário traçar uma relação custo-benefício: quanto ganho com esse tratamento
em termos de vantagens e de desvantagens. Sabe-se que é uma droga que possui
inúmeras reações adversas, como qualquer droga psicoativa. Considero
extremamente complicado usar uma droga com essas reações para melhorar o
comportamento de uma criança. Qual é o preço disso?
Portal Unicamp – Quais são os sintomas principais?
Cida Moysés – As reações adversas estão em todo o
organismo e, no sistema nervoso central então, são inúmeras. Isso é mencionado
em qualquer livro de Farmacologia. A lista de sintomas é enorme. Se a criança
já desenvolveu dependência química, ela pode enfrentar a crise de abstinência.
Também pode apresentar surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na
cognição, surtos psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até o
suicídio. São dados registrados no Food and Drug Administration (FDA). São
relatos espontâneos feitos por médicos. Não é algo desprezível. Além disso,
aparecem outros sintomas como cefaleia, tontura e efeito zombie like, em que a
pessoa fica quimicamente contida em si mesma.
Portal Unicamp – Não é pouca coisa...
Cida Moysés – Ocorre que isso não é efeito
terapêutico. É reação adversa, sinal de toxicidade. Além disso, no sistema
cardiovascular é possível ter hipertensão, taquicardia, arritmia e até parada
cardíaca. No sistema gastrointestinal, quem já tomou remédio para emagrecer
conhece bem essas reações: boca seca, falta de apetite, dor no estômago. A droga
interfere em todo o sistema endócrino, que interfere na hipófise. Altera a
secreção de hormônios sexuais e diminui a secreção do hormônio de crescimento.
Logo, as crianças ficam mais baixas e também essa droga age no peso.
Verificando tudo isso, a relação de custo-benefício não vale a pena. Não indico
metilfenidato para as crianças. Se não indico para um neto, uma criança da
família, não indico para uma outra criança.
Portal Unicamp – Criança não comportada é um
problema social?
Cida Moysés – Está se tornando. E não vai se
resolver colocando um diagnóstico de uma doença neurológica ou
neuropsiquiátrica e administrando um psicotrópico para uma criança.
Portal Unicamp – Qual seria o tratamento então?
Cida Moysés – Um levantamento de 2011, publicado
pelo equivalente ao Ministério da Saúde nos Estados Unidos, envolve uma
pesquisa feita pelo Centro de Medicina baseado em Evidências da Universidade de
McMaster, no Canadá, que analisou todas as publicações de 1980 a 2010 sobre o
tratamento de TDAH. O primeiro dado interessante foi que, dos dez mil trabalhos
que provaram que o metilfenidato funciona, é seguro, apenas 12 foram
considerados publicações científicas. Todo o resto foi descartado por não
preencher os critérios de cientificidade. Esse é um aspecto muito importante.
Dos 12 trabalhos restantes, o que eles encontraram foi que a orientação
familiar tem alta evidência de bons resultados, e o medicamento tem baixa evidência.
Isso não quer dizer que a família seja culpada. É preciso orientá-la como lidar
com essa criança. Além disso, os dados dessa pesquisa sobre rendimento escolar
foram inconclusivos, assim como não há nenhum dado que permita dizer que
melhora o prognóstico em longo prazo. Fala-se muito que, se a criança não for
tratada, vai se tornar uma dependente química ou delinquente. Nenhum dado
permite dizer isso. Então não tem comprovação de que funciona. Ao contrário:
não funciona. E o que está acontecendo é que o diagnóstico de TDAH está sendo
feito em uma porcentagem muito grande de crianças, de forma indiscriminada.
Portal Unicamp – Dê um exemplo.
Cida Moysés – Quando se fala em 5% a 10% de pessoas
com determinado problema, o conhecimento médico exige que se assuma que isso é
um produto social, e não uma doença inata, neurológica, como seria o TDAH, e
muito menos genética. Não dá para pensar em porcentagens. Em Medicina, sobre
doenças desse tipo fala-se em 1 para 100 mil ou em 1 para 1 milhão. Então, é
algo socialmente que vem se produzindo. Quando digo isso, de novo, não estou
dizendo que a família é a culpada. Pelo contrário, é um modo de viver que
estamos produzindo.
Portal Unicamp – Quem está sendo medicado?
Cida Moysés – São as crianças questionadoras (que
não se submetem facilmente às regras) e aquelas que sonham, têm fantasias,
utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São os
questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de 1.000 anos
atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo diferente e
pelas utopias. Quando impedimos isso quimicamente, segundo a frase de um
psiquiatra uruguaio, “a gente corre o risco de estar fazendo um genocídio do
futuro”.
Estamos dificultando, senão
impedindo, a construção de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é
terrível.
Portal Unicamp – Na França, o TDAH é praticamente
zero. A que se deve isso?
Cida Moysés – Isso se deve a valores culturais,
fundamentalmente.
Portal Unicamp – Isso em países desenvolvidos?
Cida Moysés – Não necessariamente. Ninguém pode
dizer que os EUA não sejam desenvolvidos.
Não obstante, o país é o primeiro
grande consumidor mundial da ritalina, da onde irradia tudo. O Brasil vem logo
em seguida, como segundo consumidor mundial. Ao contrário do que se propaga, de
que a taxa de prevalência é a mesma em todos os lugares, isso não é verdade.
Varia de 0,1% a 20%, conforme o estudo da Universidade McMaster do Canadá.
Varia de acordo com valores culturais, região geográfica, época e conforme o profissional
que está avaliando. Há trabalhos que mostram, por exemplo, que médicas
diagnosticam mais TDAH em meninos e que médicos mais em meninas, provavelmente
por uma falta de identificação. Alguns trabalhos mostram que crianças pobres
têm mais chances de receber o diagnóstico. Estamos falando de uma Era dos
Transtornos – uma epidemia dos diagnósticos. A França tem uma resistência muito
grande a isso por uma questão de formação de médicos, de valores da sociedade.
Lá eles têm um movimento muito grande desencadeado por médicos, muitos deles
psiquiatras, que se chama collectif pas de 0 de conduite. Esse movimento surgiu
como reação à lei que propunha avaliar o comportamento de todas as crianças até
três anos de idade. Era um modelo que pegava especificamente pobres e
imigrantes. O movimento conseguiu derrubar tal lei.
Portal Unicamp – Existe no Brasil alternativa
diferente da medicalização, da visão organicista?
Cida Moysés – Temos uma articulação mais recente
que é o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, o qual eu e o
Departamento de Pediatria da FCM-Unicamp integramos.
O nosso Departamento é o
seu membro fundador, tendo mais de 40 entidades acadêmicas profissionais e mais
de 3.000 pessoas físicas no Brasil, que estão buscando difundir as críticas que
existem na literatura científica sobre isso.
Além do mais, procuramos construir
outros modos de acolher e de atender as necessidades das famílias dos jovens
que vivenciam e sofrem com esses processos de medicalização.
Em novembro, a
Unicamp promoverá um Fórum Permanente sobre Medicalização da Vida, que irá
abordar essas questões de medicalização e de patologização da vida. Todos estão
convidados.
Fonte:
Artigo Unicamp:
http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro