Por:
CYNTHIA BELTRÃO
Nós mães “especiais” somos cobradas a ter uma
postura, um jeito de viver nossa maternidade, que aguça ainda mais a culpa já
vivida por todas as mães (toda mãe carrega uma culpa, acredite, é só cutucar
que ela aparece). E eu coloco mães “especiais” assim entre aspas porque, mesmo
sendo eu mesma uma mãe “especial”, eu tenho muitos problemas com esse termo.
Mas eu chego lá. Primeiro um pouquinho de contexto.
Minha gravidez foi super tranquila. Max foi uma
criança planejada e desejada. Fiz todos os exames, me alimentei bem, caminhei e
ganhei só o peso esperado. Até que no exame do último mês veio o susto. O
médico parou, olhou e olhou. Olhou o coração. O coração do meu filho que até
então era perfeito, “normal”. “Estou vendo um probleminha aqui, vocês têm
certeza que ninguém falou nada disso nos outros exames?”. Não, ninguém tinha
falado nada. O médico que deveria ter percebido isso, lá no ultrassom
morfológico, se preocupou mais em perguntar para que time o papai torcia (pra
nenhum, ele detesta futebol) do que olhar com atenção para o coração do meu
filho. Ficamos sabendo ali, na reta final, que Max era portador de uma
cardiopatia complexa, a transposição de grandes artérias, e que teria que ser
internado logo ao nascer.
Walk this way together. Foto de Felix M no Flickr em CC, alguns direitos reservados. |
Max nasceu de cesariana, a termo. Não aguentaria o
parto normal, para o qual eu tanto tinha me preparado. Primeiro luto. Foi
direto para a UTI, mal pude segurá-lo antes disso. Segundo luto. Não conseguiu
mamar no peito, passei a tirar leite com bomba elétrica, não sem antes passar
um aperto terrível por falta de orientação. Terceiro luto. Depois disso parei
de contar.
Resumindo muito, Max passou por quatro cirurgias
complexas, dez meses de internação em UTI, traqueostomia por oito meses (um
deles em casa), alimentação por sonda, homecare. E depois de tudo isso, quando
a cardiopatia tinha sido vencida, depois que ele já estava recuperado,
inclusive matriculado em escola regular, veio outro susto.
Orientados pelo psiquiatra e depois de várias
pesquisas, iniciamos as intervenções necessárias. Muita sala de espera depois,
Max é hoje uma criança falante, esperta, curiosa e definitivamente autista. É
uma criança com necessidades especiais. Mas isso não faz de mim uma mãe
“especial”, não mesmo. Eu não gosto desse termo, já falei pra vocês? Vou
explicar o porquê.
Ainda na época da UTI e da cardiopatia eu
rapidamente percebi que a culpa seria nossa companheira de jornada. Eu e meu
marido observamos certa vez que logo que o bebê do leito ao lado melhorava, nós
pensávamos “ah, que pena que não foi com o nosso”. Mas quando outro bebê
piorava, dizíamos “ainda bem que não foi com o nosso!”. E isso gerava uma culpa
danada. Percebendo que se tratava de uma reação normal para o ambiente,
cunhamos a expressão “Síndrome do Bebê do Lado” para lidar melhor com a
situação. E combinamos que íamos enfrentar a culpa e não deixar que ela nos
consumisse. Foi aí que eu comecei a notar que com relação às mães os mecanismos
geradores de culpa eram ainda mais cruéis. E que a ideia de haver algo de
especial na maternidade era na verdade uma armadilha.
Antes de mais nada, não existe nada de especial
mesmo em ser mãe. Isso pode soar maldoso ou insensível, mas é verdade. Num país
onde não temos direito nem acesso pleno a planejamento familiar, incluindo aí a
legalização do aborto, maternidade não é uma opção. Pode ser algo extremamente
especial num nível individual, fantástico, maravilhoso, espiritual mesmo. Mas
se é assim para uma, pode não ser para todas. Pra muitas mulheres é uma
imposição. E se não existe opção, não existe escolha plena. Sem escolha, nada
resta de especial.
A maternidade “especial” também não é nada especial.
Muitas crianças nascem com necessidades especiais, outras se tornam. Basta uma
meningite, uma rubéola, um motorista bêbado… e pronto. Então pode acontecer com
qualquer uma, pode acontecer com todas, e a qualquer momento da vida. Mesmo
assim existe um discurso que ronda essas mães e que impõe a elas o rótulo de
“especiais”, como se elas fossem únicas. Aparentemente esse discurso faz um
elogio dessa maternidade, mas na verdade é aprisionador, culpabilizante e
extremamente machista.
Vejam bem, é muito comum elogiarem a mãe especial da
seguinte forma: “Deus escolheu VOCÊ pra mandar essa criança, seu filho é
especial porque VOCÊ é especial”. Essa frase é muito comum, mas existem
variações não religiosas. Todas elas têm implicações cruéis para as mães. Nós
mulheres já somos praticamente treinadas para ver a maternidade como bênção e
destino, imaginem quando se escuta isso.
Além disso uma mãe especial deve ser feita de um
material mais resistente. Dela é cobrada uma resiliência maior, afinal ela foi
escolhida. Muitas escondem o cansaço, a angústia, o desespero por detrás dessa
imagem. Elas consideram que têm que aguentar mais, dar conta de mais. Afinal,
elas não seriam mães “especiais” se não fossem capazes de suportar mais que
todas as outras. Por isso procuram menos ajuda profissional, estão mais
sujeitas à depressão e a outros sofrimentos mentais, e consequentemente, à
perda de emprego e à dissolução dos vínculos afetivos e familiares. É muito
comum essa mulher se isolar na sua dor. E a solidão, a depressão, o cansaço e a
falta de perspectivas acabam sendo vistas como parte daquilo que é ser mãe
“especial”. Tentar procurar ajuda é visto por ela e pela sociedade como sinal
de fraqueza, afinal ela deveria aguentar. Ninguém cuida do cuidador.
Para o Estado a mãe “especial” também é perfeita.
Ela geralmente tem duas opções. Ou vai aceitar seu papel sem cobrar do governo
a ajuda devida ou vai se organizar em associações que em sua maioria também
substituem a ação estatal, como é o caso de algumas APAES. O Estado fica na
cômoda situação de enviar verbas enquanto as famílias se desdobram para ocupar
o vácuo deixado no tratamento dos seus filhos. Pretendo abordar essa questão,
que é bastante complexa, em outro momento.
É bom lembrar que essa idealização da maternidade é
perniciosa também para a própria criança portadora de necessidades especiais. A
mãe, tomada pela ideia de que precisa fazer todos os sacrifícios em nome do seu
filho, vira presa fácil de tratamentos mirabolantes. A maior parte é indicada
por gente que tem genuína vontade de ajudar mas pouco bom senso. Mas existem os
aproveitadores que vendem tratamentos “alternativos” extremamente duvidosos. A
mãe “especial” é muito vulnerável a esse tipo de assédio. Ela precisa tentar de
tudo, TUDO MESMO, pra ajudar seu filho. E dá-lhe culpa. Muitos desses
tratamentos são só inócuos, outros atrasam o emprego de métodos comprovadamente
eficazes, alguns são só perigosos mesmo. E lá fica a mãe “especial”, perdida
entre tantas escolhas e julgada por todos.
Mas existe uma situação em que esse discurso da
maternidade “especial” é ainda mais trágica. Trata-se da exploração por setores
extremistas e patriarcais da nossa sociedade da culpa materna em caso aborto de
fetos inviáveis, como os anencéfalos. Muitas mães “especiais” abdicam da
própria vida em nome desse ideal de maternidade. É uma escolha dessas mulheres,
claro. Mas não dá pra deixar de pensar que é uma escolha permeada de cobranças
sociais, religiosas e machistas. Cobranças que jogam com a culpa dessas
mulheres, tudo coberto pela embalagem da maternidade “especial”. É a imagem
definitiva da “mãe acima de tudo”.
Enfim, essa coisa de mãe “especial” é complicada
demais. Até mesmo danosa. E o que o feminismo tem com isso? Bem, o feminismo
tem como um de seus objetivos questionar os estereótipos ligados ao gênero,
discutindo o que é ser mulher, o que é ser mãe e, por que não, o que é ser mãe
“especial”. Muito pouco desse papel me parece ser “natural”. Na verdade, creio
que a maior parte das implicações da maternidade “especial” é socialmente
construída e mantida por forças patriarcais que se beneficiam dessa abnegação
feminina.
Da mulher que vai permanecer junto à criança doente
quando abandonada por um companheiro insensível e egoísta, mantendo a ideia de
unidade familiar a todo custo, passando pela mulher que abdica do trabalho e da
saúde física e mental para dar sozinha assistência ao filho, até a mulher que sacrifica
a vida mesmo sabendo que o feto não sobreviverá a ela, todas são versões de um
ideal de maternidade que pouco beneficia a mulher. Restam como testemunhas
abnegadas do descaso de seus companheiros e de um Estado que lucra com seu
estoicismo. Penso que tanto essas mulheres quanto seus filhos ganhariam mais se
esse ideal fosse questionado. A mãe “especial” não é super. Ela sou eu, pode
ser você, pode ser sua irmã, esposa, companheira, filha, vizinha. Vai precisar
da sua ajuda, vai precisar de amparo, colo, ombro amigo e uma ajudinha pra
olhar a criança pra que ela descanse um pouco. Mas ela não precisa, com
certeza, é de mais culpa.
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